Clássico do Dia: 'Mecânica Nacional' tenta desvendar como funciona o inconsciente coletivo

Todo dia um filme é destacado pelo crítico do 'Estado', como este de Luis Alcoriza que, segundo o diretor, é um exemplo criativo do que devia ser o cinema

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Por Luiz Carlos Merten
5 min de leitura

Em 1967, Jean-Luc Godard estava no auge, mas também estava chegando no limite. Fez Weekend, que, no Brasil, se chamou Weekend à Francesa. Um engarrafamento monstruoso; a civilização do automóvel em crise e desmontada por meio de cenas violentas. O restante é história. Godard, como observa Jean Tulard no Dicionário de Cinema, desapareceu para dar lugar ao professor de revolução, em filmes didáticos, tecnicamente rudimentares, e feitos coletivamente, para reagrupar a esquerda. Godard só voltou de fato ao cinema dos seus primórdios nos anos 1980, mas depois nunca deixou o experimentalismo, fazendo seus filmes nas franjas do sistema.

O curioso é que, em 1972, do lado de cá do Atlântico, Luis Alcoriza fez o que não deixa de ser o Weekend mexicano – Mecânica Nacional. Embora possua uma extensa carreira como roteirista e diretor, o nome de Alcoriza nem consta do dicionário de Tulard. Nos anos 1950, ele foi roteirista de oito filmes de Luis Buñuel na fase mexicana, incluindo alguns dos mais famosos – Los Olvidados, El Bruto, El/O Alucinado e O Anjo Exterminador, esse já nos 1960. Natural da Espanha, integrante de uma família de artistas condenada ao exílio por causa da Guerra Civil que levou à vitória do generalíssimo Francisco Franco, ele sempre se recusou a admitir que Buñuel tivesse sido seu mentor. Considerava-o seu igual, dizia que tinham afinidades intelectuais. E, quando se tornou diretor e a crítica assinalava "semelhanças", dizia, não sem provocação, que estava retomando o que, como escritor, emprestara a Don Luis.

Mecânica Nacional é um exemplo criativo do que deveria ser o cinema, segundo Luis Alcoriza. Sua inclusão numa série de clássicos talvez provoque espanto, porque, afinal, o cinema latino-americano de língua espanhola é um tanto estranho para o espectador brasileiro, tirando os filmes de Ricardo Darín. Mas, no passado, antes que o mercado se (re) formatasse para a produção de Hollywood, não era assim; e o cinema mexicano de Cantinflas e dos melodramas enchia as salas de todo o Brasil, distribuído pela Pel-Mex. Mecânica tem similaridades com Godard, possui cenas de um surrealismo à Buñuel. Apesar disso, qualquer associação, por legítima que seja, será superficial. A pegada é de Alcoriza.

O filme mostra uma família – pai; mãe; duas filhas; a sogra, avó das meninas –, mais um casal de amigos, o compadre e a comadre. O grupo sai para um piquenique, próximo ao local onde está sendo disputada uma corrida de carros. Cria-se o engarrafamento. Ocorre de tudo – comida, bebida, sexo, morte. A última imagem é de um bêbado, tão bêbado, que afunda no lixo. Na época, alguns críticos reclamaram do que, para eles, eram a grosseria e a vulgaridade de Alcoriza. Puro complexo de inferioridade. Para buscar um paralelo possível, na Itália e na França, Marco Ferreri fazia filmes como A Comilança, em que os personagens morrem em meio a crises de flatulência e vômito. Ferreri era chique, era "crítico". Tudo bem, mas Alcoriza também era.

Cena do filme 'Mecanica Nacional', deLuis Alcoriza. Foto: Producciones Escorpión

Talvez seja necessário situar que, no fim dos anos 1960 e início dos 1970, uma nova geração estava transformando a visão que o público tinha do cinema mexicano. Nos anos 1930, o cinema do México teve Fernando de Fuentes, com um clássico imorredouro do cinema latino – Vamonos con Pancho Villa. Nos 1940 e 1950, houve a dupla Emilio Fernández/Gabriel Figueroa com seus filmes indigenistas e telúricos. Paralelamente, havia o cinema de lágrimas, os melodramas que erigiram os mitos de Maria Félix, Marga Lopez e de diretores como Ismael Rodriguez e Roberto Gavaldón. Quem nunca viu La Diosa Arrodillada não sabe o que está perdendo. Contra essa tradição se insurgiram Arturo Ripstein em O Castelo da Pureza e O Santo Ofício, Paul Leduc em Reed, México Insurgente.

Warren Beatty, com certeza, viu México Insurgente antes de fazer Reds, que ganhou todos aqueles Oscars, incluindo melhor direção, em 1981. No Leduc, o jornalista norte-americano John Reed termina o filme correndo atrás da carroça (da história) para se integrar à Revolução Mexicana. Não é mais só uma testemunha. No Beatty ele já começa em outra carroça, na Revolução Russa. E Ripstein seguiu fazendo todos aqueles grandes filmes – Vermelho Sangue, A Perdição dos Homens, O Diabo entre as Pernas. Alcoriza estreou com Os Jovens em 1960, filmou Tiburoneros em 1963, Amor e Sexo em 1964, El Gangster em 1965. São filmes que procuram dar testemunhos sobre diferentes segmentos da sociedade mexicana. Mecânica Nacional vai além – a crítica é estrutural.

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O título tem a ver com a oficina mecânica do chefe de família. Afinal, também é um filme sobre carros. Mas, na verdade, a mecânica nacional é algo mais profundo. Uma tentativa de entender como funciona o inconsciente coletivo. Durante todo o tempo, cruzando histórias e personagens, o diretor-roteirista desconstrói o machismo inerente ao homem mexicano-latino, em geral. Todos querem tirar proveito e o esporte nacional não é o automobilismo. É colocar chifres no outro, mas, claro, cuidando para não ser chifrado também.

O compadre explica como as coisas funcionam – “A vizinha aqui come demais e fica com dor de barriga. Vai ao médico que, em vez de lhe dar um remédio, prefere fazer uma cirurgia, porque vai ganhar mais. Aí, o carro do médico enguiça e ele vai à oficina do compadre, que também aproveita para dar sua mordida. A TV do compadre também para de funcionar e o técnico, em vez de simplesmente trocar a válvula, vai logo trocando o tubo de imagem.” Nessa escalada em que todo mundo quer se dar bem, a pergunta óbvia é quanto ao homem que está fazendo essa reflexão. E ele, como fica nisso tudo? “Eu tenho uma agência funerária e espero todos vocês.”

Enquanto alguns filosofam, outros comem, bebem, tentam fornicar e a maioria briga. O mexicanismo assume todo o seu ridículo com bigodudos de trabuco na cintura e boleros sofridos na trilha e, quase 50 anos depois, pelo menos as armas estão de volta. Nos EUA, a Associação do Rifle sempre defendeu o direito de o cidadão andar armado. Já dizia Arthur Penn – a miséria da "América" é acreditar que conflitos só se resolvem pela violência. No Brasil, desde o ano passado, o porte de armas disparou. Alcoriza, lá atrás, levava sua crítica à classe média ao limite do ódio. Praticamente em todo o filme só existe uma personagem positiva, e é a prostituta. Cansada das piadas sexistas e do comportamento possessivo dos homens, ela abandona o amante e deixa às "madames" a tarefa de entreter seus maridos e noivos. O clima é de derrocada. Nada se salva. O bêbado no lixo antecipa, em mais de dez anos, o bobo conduzindo o cego que se equilibra à beira do abismo em Ran, de Akira Kurosawa.

O limite do surreal é a cena em que os bêbados se atrapalham na tentativa de colocar no carro o cadáver da vovó, que estourou de tanto comer. Eles a sentam, muito digna, para parecer que está viva. Quatro anos mais tarde, Robert Altman também mostrou uma família tentando esconder uma defunta para seguir com a festa em Cerimônia de Casamento. Alcoriza antecipou Altman. Influenciou-o? Ou terá sido Buñuel? Altman, afinal, gostava de soltar a câmera entre numerosos personagens, como Buñuel fez ao longo dos anos 1960 e 70, em Anjo Exterminador coescrito por Alcoriza –, O Discreto Charme da Burguesia e muitos outros. Como representação de uma sociedade autofágica, Mecânica Nacional é um clássico. Possui um elenco de nomes que talvez sejam pouco conhecidos, mas Manolo Fábregas, Lucha Villa, Hector Suárez e Sara García se manejam muito bem no registro entre o cômico e o trágico. Luis Alcoriza de la Vega morreu em 1992, em Cuernavaca, aos 74 anos. Cuernavaca é a cidade em que o cônsul Firmin vive a sua odisseia interior no Dia de Finados, em À Sombra do Vulcão, romance mítico de Malcolm Lowry filmado por John Huston em 1984. Pode ser mera coincidência, mas o penúltimo Alcoriza, em 1988, chamou-se Dia de Muertos.

Onde assistir:

  • À venda em DVD

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