Clássico do Dia: Em 'A Viagem do Capitão Tornado', Ettore Scola celebra a vida

Todo dia um filme será destacado pelo crítico do 'Estado', como este em que o cineasta italiano faz a relação entre teatro e cinema

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Por Luiz Carlos Merten
Atualização:
3 min de leitura

Por volta de 1990, Ettore Scola não parecia estar na melhor fase de sua carreira. As obras-primas haviam ficado para trás - Um Dia Muito Especial, Casanova e a Revolução, O Baile - e, o que era pior, Scola dava a impressão de repetir-se em A Família, Splendor, etc. Foi aí que ele surpreendeu, com o mais belo dos seus filmes - A Viagem do Capitão Tornado. Poderá haver controvérsia, não importa. Na relação entre teatro e cinema, Capitão Tornado é único. Será sempre um clássico.

Talvez, para falar sobre esse filme, valha a pena evocar antes um Jean Renoir de 1952. Filho do pintor impressionista Auguste Renoir, irmão do ator Pierre Renoir, Jean foi piloto na 1.ª Grande Guerra. Decidido a seguir a tradição artística da família, quis ser ceramista, mas o cinema entrou em sua vida e ele fez, nos anos 1930, todos aqueles filmes marcantes - Boudu Salvo das Águas, o inacabado Le Dejeuner sur L'Herbe, A Besta Humana e, especialmente, A Grande Ilusão e A Regra do Jogo. Exilado em Hollywood, para fugir ao nazismo, não se adaptou às normas da indústria. Com o fim da guerra, e recuperada a liberdade, foi à Índia e fez um filme - O Rio Sagrado, de 1950 - que foi decisivo na formação de um autor indiano tão importante quanto Satyajit Ray. De volta ao cinema europeu, foi a vez de La Carrosse d'Or, livremente adaptado de Prosper Merimée, o autor de Carmen.

'A Viagem do Capitão Tornado', filme de Ettore Scola Foto: Massfilm

François Truffaut admirava tanto A Carroça de Ouro que chamou de Films du Carrosse a sua produtora, em homenagem a Renoir. O filme se passa supostamente no Peru colonial, contando a história de uma atriz, Camille, que seduz três homens - o vice-rei, o toureiro e o soldado -, mas sem que se saiba, em momento algum, se ela está sendo sincera, ou de quem gosta de verdade. Com a carruagem de ouro que o vice-rei quer pagar com dinheiro do povo, Camille celebra a astúcia e o artifício - a commedia dell'arte, na qual faz o papel de Colombina. A italiana Anna Magnani interpreta uma Camille gloriosa e o filme foi feito em estúdio em Cinecittà, em Roma, com ocasionais externas na região do Lazio.

Quase 40 anos depois, Scola fez a sua Carroça, que não é bem de ouro. Um grupo mambembe, personagens que remontam à commedia dell' arte. O Arlequim, os amantes, o Doutor, o Capitão, que se chama Fracassa, como no título original. Vale lembrar que o Scola baseia-se em Téphile Gautier, autor francês que foi contemporâneo de Merimée, durante boa parte do século 19. Ambos começaram românticos, mas enquanto Merimée bancava o farsante, criando personas às quais atribuía suas obras, Gautier foi parnasiano e já que o movimento, essencialmente poético, era contemporâneo do realismo/naturalismo, flertou com esses em Mademoiselle de Maupin e Capitão Fracasse, seus títulos mais conhecidos.

O fio condutor é fornecido pelo aristocrata falido, Sigognac, que acolhe o grupo de artistas famintos e se junta a eles em movimentadas aventuras, enquanto todos rumam para Paris e a corte do rei. Sigognac carrega a espada que um ancestral ganhou do rei, ou do rei anterior, ao salvar sua vida. Como ator, o nobre ganha fama e o favor do rei, mas perde dois amores, Serafina e Isabelle, ambas integrantes da companhia. Vincent Perez, Ornella Muti e Emmanuelle Béart formam o trio, e parte da história é contada por Massimo Troisi, como Pulcinella, pouco antes de O Carteiro e o Poeta, de Michael Radford, de 1994, que terminou sendo seu último filme, pois ele morreu naquele mesmo ano, precocemente, de um ataque do coração.

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Pulcinella diz a frase que parece resumir o sentido do filme - “Com fome, sente-se menos a tristeza.” Na estrada, mas A Viagem do Capitão Tornado, curiosamente, dá a impressão de não sair do lugar, a trupe encolhe. Um ator morre na neve, as duas ingratas fogem com maridos ricos e Sigognac é mordido pelo teatro, que dá sentido à sua vida. Ele escreve uma peça que não consegue montar, pelo menos do jeito como foi concebida. Os atores, os analfabetos e os outros, preferem improvisar e a obra escapa ao controle. É dessa forma que filmando a arte, o teatro, com seu jogo de máscaras, Scola celebra a vida. O ato de viver como improvisação permanente.

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