Clássico do Dia: Com 'Mamma Roma', Pasolini iniciou seu cinema da poesia

Todo dia um filme será destacado pelo crítico do 'Estadão', como este de Pier Paolo Pasolini que mostra a segunda chance de uma mulher

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Por Luiz Carlos Merten
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6 min de leitura

Quando Pier Paolo Pasolini realizou Mamma Roma, em 1962, o cinema italiano vivia um dos melhores momentos de sua história. Michelangelo Antonioni encerrava sua trilogia da solidão e da incomunicabilidade com O Eclipse. Valerio Zurlini impunha-se em Veneza (e ganhava o Leão de Ouro) com o diário íntimo de Dois Destinos, Federico Fellini e Luchino Visconti preparavam Oito e Meio e O Leopardo e o grande sucessdo internacional, de público e crítica, foi Divórcio à Italiana, pelo qual Marcello Mastroianni foi indicado para o Oscar e Pietro Germi (com Ennio De Concini e Alfredo Gianetti) ganhou da Academia o prêmio de melhor roteiro, além de também haver sido indicado na categoria de direção. Foi nesse quadro que surgiu a história da prostituta que espera iniciar uma nova fase da vida, com o filho.

O desconcerto foi grande. Com seus personagens periféricos, os terrenos baldios, os conjuntos habitacionais, o filme foi considerado um anacronismo, um retorno tardio à exaurida vertente do neo-realismo. A redivinização de Anna Magnani, 11 anos depois de Belíssima, de Luchino Visconti, 17 após Roma, Cidade Aberta, de Roberto Rossellini – e ela perdera a guerra dos vulcões para Ingrid Bergman -, estava na cara na contramão da história. Só Pasolini, insolente, provocador, parecia certo do que estava fazendo ao construir seu cinema da poesia, em oposição ao dominante, da prosa.

Estão para completar-se 45 anos do brutal assassinato de Pasolini na praia de Ostia, naquele 2 de novembro de 1975. O que ele mais temia, o que descortinava no horizonte, tornou-se realidade. O fascismo não foi derrotado após a 2.ª Grande Guerra. Voltou com força à vida italiana. A direita avança geral. A par de ser uma terrível realidade, o coronavírus também é metáfora, permite uma gama de interpretações. Pasolini, com certeza, estaria pensando o mundo nesse novo momento. Os papeis do Estado, do indivíduo.

Pasolini não é, nunca foi, uma unanimidade, exceto no seu reconhecimento como polemista. Foi único no panorama literário e cinematográfico italiano. Comunista renegado pelo partido, provocou escândalo com O Evangelho Segundo São Mateus e Teorema, e os dois filmes foram premiados pelo júri católico em Veneza. Foi à fontes do mito em Édipo Rei e Medeia. Os críticos dizem que Marx, Freud e Cristo nutriram sua formação. Na França, pelas múltiplas facetas como criador, foi comparado a Jean Cocteau.Talvez, e com mais propriedade, devesse ser comparado ao imoralista André Gide, autor de Corydon, Viagem ao Congo e O Retorno da URSS. O renomado Michel Ciment observou que tinham em comum o egotismo, e foi o que lhes deu a liberdade de movimento e a independência para desafiar dogmas e regras, cada um no seu campo.

Todo dia um filme será destacado pelo crítico do 'Estadão'; Pasolini mostra a segunda chance de uma mulher em 'Mamma Roma' Foto: Versátil

Passado todo esse tempo, Pasolini permanece uma referência (e um enigma?). Cada crítico ou espectador terá o seu filme preferido do autor. Em geral, são O Evangelho e Teorema, com aquele Terence Stamp que chega misterioso, angelical, para desestruturar a família bnurguesa. Os maiores são Mamma Roma, o episódio A Terra Vista da Lua, de As Bruxas, toda a parte referente a São Francisco, o sublime Totò, de Gaviões e Passarinhos, e Medeia. Pasolini não era apenas seduzido pelo mito no mundo arcaico. Buscava o sagrado no profano mundo contemporâneo. Não existe nada mais mágico que o início de Medeia. O centauro nomeia coisas e bichos para Jasão e lhe explica por que tudo aquilo é santo. Se esse é o início, o fecho é o desespero da diva Maria Callas, perpetrado seu crime medonho, matando os filhos para punir o marido. Tudo era santo. A paixão humana rompeu a harmonia do mundo.

Depois de Medeia, que no Brasil recebeu um acréscimo ao título – A Feiticeira do Amor, e na mitologia ela era ligada a Hécate, a deusa da bruxaria e das encruzilhadas -, Pasolini se afasta do mundo clássico e busca o popular na trilogia da vida. Decameron, Os Contos de Canterbury, As 1001 Noites. A morte interrompe sua obra, e a própria vida, em Salò, ou Os 120 Dias de Sodoma. Sade tranposto para o fascismo terminal (mas não era). Sade, todo mundo sabe, bebeu na fonte de Dante, A Divina Comédia. O inferno, segundo Pasolini. No castelo dos fascistas, um prisioneiro tem o olho furado. A outro, cortam a língua. De uma jovem, arrancam o couro cabeludo. Só horror. Intuíra Pasolini que Salò seria sua despedida? Pois esse filme terrível, asfixiante, termina de forma pacífica. Um guarda dança o tema de Ennio Morricone. Chama outro para dançar com ele. O primeiro pergunta o nome da namorada do segundo, e ele responde. Margarida. Seguem dançando.

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Alienação? Talvez fosse isso que Pasolini estivesse criticando, mas na vida e na obra ele foi o homem do rompimento, como Cristo quando expulsa os vendilhões do templo. Essa ideia de uma ruptura está no centro de seu cinema. Pasolini funda a própria linguagem. O realismo de cena não se aplica a seus filmes, mesmo quando são brutais como Salò. As coisas, sob o seu olhar crítico, sempre podem piorar. Passaram-se quase 60 anos de Mamma Roma. O mundo, com certeza, ficou pior, no sentido de que é menos humano, sem noção do divino, por mais que dirigentes invoquem Deus a toda hora. Tem gente que acredita que a covid-19 está dando à humanidade uma chance para se reconstruir, será? Pensado agora, Mamma Roma fica maior que nunca.

Mamma e Roma, duas instituições, dois símbolos da vida, e não somente italiana. A mãe, universal. Roma, centro das cristandade. Anna Magnani faz a prostituta cansada de guerra que quer sair da rua. Paga pela casa própria no conjunto da periferia, quer abrir uma barraca na feira, o mesmo sonho de Jean Sorel em Um Dia de Enlouquecer, de Mauro Bolognini, que Pasolini escrevera, dois anos antes. Para completar o sonho, a mamma traz o filho para viver com ela. Ettore - o nome evoca o herói da Ilíada, príncipe de Troia - é um garoto puro (interpretado por Ettore Garofolo). De cara, a mãe o adverte, diz que ele não conhece a maldade do mundo. Na cidade, Ettore será um daqueles ragazzi di vita cujos corpos viris tanto fascinavam o autor, na arte como nas caçadas das madrugadas romanas. Belo e cruel, vítima e carrasco, Ettore e seus amigos vivem à deriva em descampados com ruínas arcaicas. O destino do filho, sua crucificação, condena o sonho da mãe. Mamma Roma tem o mais trágico dos desfechos – olha o spoiler!. A mãe, a cara desfeita, emparedada no apartamento, agora vazio.

Por mais que Pasolini tenha sido único, sua trajetória chocou-se com a de Federico Fellini, de quem foi roteirista em As Noites de Cabíria, de 1957, convertendo o diálogo original ao dialeto romano. Fellini o apadrinhou, deveria produzir seu primeiro longa, L'Accatone, de 1960, que virou, no Brasil, Desajuste Social. Mas, quando isso ocorreu, o voo do pupilo ficou incômodo para o veterano. Pasolini tornou-se o antagonista ideal. Tulio Kesich, crítico e biográfo de Fellini, narra as obsessões/fantasiass que ele tinha com Pasolini. E a saudação à Magnani em Roma de Fellini, quando a chama de loba, não será também uma dupla homenagem, à atriz e a Pasolini? Tudo – nada? - deveria aproximar Pasolini do grande Visconti. Ambos podiam ser comunistas e homossexusais, mas Luchino era um aristocrata, o conde vermelho. Representava aquilo que Pasolini, com sua urgência das ruas, talvez devesse recusar.

Mas, então, que estranha coincidência faz com que as obras de ambos deem, com tanta frequência a impressão de dialogar? Rocco e Seus Irmãos e Desajuste Social, Mamma Roma e Belíssima, Teorema e Violência e Paixão? Não se pode esquecer, também, que Visconti bebeu na fonte da tragédia e fez de Claudia Cardinale a sua Electra em Vagas Estrelas da Ursa, cujo título, tirado de um poema de Giacomo Leopardi, lhe foi sugerido, ora vejam, por Mario Soldati, de quem Pasolini também foi roteirista. Todas as peças se encaixam. A mãe de Rocco, Rosario Parondi, é uma força grega tão trágica, e intensa, quanto a Magnani. Mamma Roma pertence à história.

Onde assistir:

  • À venda em DVD

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