Clássico do Dia: 'Cinzas e Diamantes' consolidou estética política do cinema polonês

Todo dia um filme clássico é destacado pelo crítico do 'Estado'; como este, de Andrzej Wajda

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Por Luiz Carlos Merten
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Zbigniew Cybulski já tinha 40 anos, mas os óculos escuros e as jaquetas de couro preto lhe davam um aspecto mais jovem, o que, aliado aos personagens rebeldes, lhe valeu a definição de James Dean polonês. Quis a fatalidade que ele, como o astro norte-americano, morresse jovem, e num acidente marcado pelo absurdo. Cybulski dirigia-se ao set de filmagem no trem urbano. Saltou na plataforma, mas caiu de mau jeito, nos trilhos. O trem avançou por cima dele. Foi uma comoção nacional.

Em 12 anos de carreira, entre 1955 e 67, ano de sua morte prematura, ele participou de 34 filmes e especiais de TV. O maior de todos eles, um clássico do cinema polonês e mundial, é Cinzas e Diamantes, de Andrzej Wajda, de 1958. Os muitos jovens talvez não lembrem, mas em 2000 ele foi homenageado pela Academia de Hollywood, que lhe outorgou um Oscar de carreira. Jane Fonda, a ex-Hanoi Jane – quem mais? -, curvou-se perante ele. Chamou-o de Sr. Política do cinema. Wajda se impôs como grande cineasta logo no segundo filme, Kanal, de 1957, que causou sensação em Cannes com a perseguição de integrantes da resistência pelos nazistas no esgoto de Varsóvia. No ano seguinte, em Veneza, a guerra voltou com Cinzas e Diamantes. Pelos anos e décadas seguintes, foi o historiador da Polônia contemporânea. Em 1981, venceu Cannes com Homem de Ferro, seu tributo ao sindicato Solidariedade.

Cena do filme 'Cinzas e Diamante', de Andrzej Wajda Foto: Zespól Filmowy "Kadr"

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Começa com dois homens deitados na grama. Um, jovem, Maciek, interpretado por Cybulski, o outro mais velho, Andrzej. Não é um dia qualquer, mas o 7 de maio de 1945. A guerra acabou, o clima é de paz, eles descansam, à espera de um carro. Mas essa paz é enganosa. A grande guerra pode ter acabado, mas começou uma guerra interna na Polônia. Maciek e Andrzej integram um grupo armado, a Armia Krajowa, que apoiava o governo polonês no exílio, em Londres. Preparam-se – o carro irá levá-los - para matar o líder da comunista Armia Ludowa, que lutou na Guerra Civil espanhola, passou pelo exílio na (então) URSS e agora luta por uma nova ordem social na Polônia dilacerada por conflitos de classes e pelas feridas provocadas pelo nazismo. Szczuka é seu nome. Os dois grupos estiveram unidos contra os alemães. Com o fim da guerra, disputam o poder.

Maciek e Andrzej sobreviveram aos levantes do Gueto de Varsóvia. Sonham com liberdade. O futuro da Polônia foi decidido por Stalin. Será um Estado de partido único, integrado ao que será o bloco comunista do Leste europeu. As vidas de Maciek, Andrzej e Szczuka estão por um fio. Para chegar ao líder da Armia Ludowa, Maciek se hospeda no hotel onde haverá um banquete para ele. Ao longo de uma noite que será decisiva para todos, Maciek conhece a garota do bar, Krystyna/Ewa Krszyzewska. São jovens e belos. Da conversa passam aos gestos afetivos, ao sexo. Maciek desabafa: “Não posso seguir adiante matando e me escondendo. Quero viver, só isso”.

Esse 'só' se revelará excessivo, difícil. Maciek começa a duvidar se deve mesmo matar Szczuka, mas está preso ao compromisso que assumiu. Desde o primeiro longa, Geração, de 1954, o cinema de Wajda, nessa primeira fase, trata sempre da guerra e suas consequências para a geração do cineasta. São todos, de uma forma ou outra, filmes sobre a resistência. Maciek, nesse momento, sonha com a volta à vida civil, mas seu passado o persegue, e condena. Não lhe deixa escolha. Foram filmes que Wajda conseguiu fazer após a morte de Stalin, quando se iniciou um período de degelo. São filmes que revelam uma poderosa imaginação visual. Wajda era um barroco, e dos maiores. Daquele esgoto de Kanal, ele saiu para criar imagens que se gravaram para sempre no imaginário dos jovens que deliraram com Cinzas e Diamantes. Nascia ali um duplo culto – ao filme e ao ator.

Para expressar a Polônia em crise, e por se tratar de um país de forte tradição católica – lembrem-se do exemplo de Karol Wojtyla, que virou papa como João Paulo II -, Wajda criou a imagem da igreja em ruínas, com a cruz invertida e o Cristo de cabeça para baixo. Uma crise dos valores? Não menos forte é o desfecho dramático. Maciek é pressionado a matar Szczuka e, na perseguição que se segue, Andrzej morre em seus braços. Ensanguentado, ele se enrola nos lençóis colocados para secar, numa imagem de beleza e tragicidade que só um grande artista poderia criar. Nos anos e décadas seguintes, Wajda continuou filmando a gênese do capitalismo na Polônia, a industrialização, a burocracia, o stalinismo, o Solidariedade. Jane Fonda tinha toda razão. Sua estética política marcou o cinema. Wajda morreu em 2016, aos 90 anos.

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