Clássico do Dia: 'Candelabro Italiano' fez sucesso ao mostrar o desejo de liberdade

Todo dia um filme será destacado pelo crítico do 'Estado', como este de 1962 que nos leva a um passeio por Roma e pelo amor

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Por Luiz Carlos Merten
6 min de leitura

Hollywood instituiu e a Academia referendou uma linha de cinema turístico que os críticos chamavam de 'travelogue'. Foi em 1954, quando A Fonte dos Desejos, de Jean Negulesco, venceu dois Oscars, o de fotografia, para Milton Krasner, e o de melhor canção, Three Coins in the Fountain, de Jule Styne/Sammy Cahn, cantada por Frank Sinatra. O filme conta a história de três mulheres norte-americanas que vão a Roma e, seguindo a tradição, jogam moedas na Fontana di Trevi, aquela mesma em que Anita Ekberg entraria vestida em A Doce Vida, de Federico Fellini, seis anos mais tarde. Elas atravessam o Atlântico para pedir por amor e, de alguma forma, são recompensadas.

Nove anos mais tarde, Delmer Daves retomou a vertente e voltou a Roma com a equipe de Candelabro Italiano. O filme chama-se, no original, Rome Adventure. Baseia-se no romance Lovers Must Learn, de Irving Finegan. O que os amantes, os enamorados, precisam aprender? De cara, nós, o público, somos apresentados à professora Prudence Bell/Suzanne Pleshette. Numa escola tradicional da puritana da Nova Inglaterra – onde mais? -, ela enfrenta o conselho de administração, porque ousou apresentar a suas alunas um romance considerado obsceno, O Amante de Lady Chatterley.

É fato que o livro famoso de D.H. Lawrence, publicado originalmente em Florença, nos anos 1920, teve de esperar até os 60 para sair na Inglaterra, como nos EUA. Prudence faz a defesa da obra, e do seu valor pedagógico. Como não consegue convencer o conselho, pega o livro e despede-se. Diz que vai para um lugar onde as pessoas não têm medo do amor. Era um pouco a tese das três protagonistas do Negulesco, na década anterior. Dorothy McGuire, Jean Peters e Maggie McNamara. Era um 'women's picture', um filme de mulheres no jargão da indústria, e o trio representava um tipo de mulher independente, resolvida economicamente e disposta não apenas a falar sobre sexo, mas de passar da teoria à prática, fazendo. A diferença parecia grande em relação às good girls dos anos 1940, mas nem tanto. Mesmo quando falam de liberdade sexual essas mulheres pensam no amor. E, como suas mães, avós, bisas, seguem sonhando com casamento.

A mais ingênua (Maggie) encontra um príncipe, um príncipe daqueles italianos, de uma família decadente, mas de sangue legitimamente azul. A executiva (Jean) apaixona-se por um homem pobre, mas honesto e trabalhador. E a secretária (Dorothy) volta para casa para descobrir que o amor sempre esteve ao lado dela – é o escritor para quem trabalha. Anos depois, Prudence chega a Roma, hospeda-se numa pensão. Vai trabalhar na pequena livraria de uma norte-americana – Celeste Holm -, que também foi à Itália atrás de amor. O diálogo é mais ou menos o seguinte. Celeste, que se chama Daisy, é uma mulher atraente, na faixa dos 40. Diz que veio em busca de homens que belisquem o bumbum das mulheres. Prudence, maliciosamente, pergunta se eles ainda (e faz o gesto de besliscar)? A resposta é que sim.

Viva l'Itália. Na América reprimida sempre houve essa fantasia da Europa libertadora, mas a França e a Suécia tinham uma ideia de permissividade, inclusive por meio do cinema, que devia assustar a maioria das mulheres. A Itália, de alguma forma, parecia mais romântica. Veneza, a lua e você. Nada como o tempo. Na época, o diálogo entre Prudence e Daisy revelava um desejo de liberdade, e quem sabe um comportamento libertário. Hoje, depois da revolução do #MeToo, essa história de beliscar envolveria uma discussão sobre ser consensual, se é correto, etc, sob pena de parecer machismo, quando não abuso. O importante é que, no momento seguinte, Prudence abdica do próprio nome e manda a prudência às favas, embarcando numa ligação com esse cara que a convida para passear na sua lambreta.

Cena de Candelabro Italiano Foto: Warner Bros.

Surpresa! Ele não apenas é um norte-americano que veio estudar arquitetura na Itália, Don Porter, como é interpretado por Troy Donahue, o galã teen da Warner, na época. Já era o astro preferido do diretor Daves, seria o marido futuro da estrela. É verdade que o casamento não durou muito, mas contribuiu para a aura romântica do filme. Suzanne e Troy ainda fariam juntos Um Clarim ao Longe, western que foi o testamento de um dos grandes do gênero, Raoul Walsh, mas essa é outra história. Cerca de 30 anos mais tarde, em Caro Diário, mudou a marca, o veículo, mas Nanni Moretti também montou na vespa, que virou o logo de sua empresa produtora, para correr atrás de Jennifer Beals e ela havia sido a metalúrgica/dançarina de Flashdance, mas essa, como diria Billy Wilder, é (mais) outra história. Na providencial lambreta, Suzanne e Troy, Prudence e Don, fazem o roteiro turístico de Roma, com a inevitável passagem pelo Coliseu e com direito a uma esticada até Veneza.

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A essa altura, Prudence reencontra o pretendente italiano que havia conhecido no voo, interpretado pelo galã made in Italy de Hollywood, Rossano Brazzi. Roberto Orlandi entra na história para ter uma conversa séria com Prudence, fazendo-lhe ver que as mulheres podem até conseguir a liberdade dos homens, mas nunca conseguirão arcar com as consequência. Um exemplo dessa outra (nova?) mulher é a ex-namorada de Don, que reaparece para retomar a relação. Angie Dickinson, a par de ser a Feathers do western clássico Onde Começa o Inferno/Rio Bravo, de Howard Hawks, e de possuir pernas espetaculares – que realçavam muito bem na lambreta -, faria mais tarde a série de TV Police Woman, que pode andar meio esquecida, mas foi um marco do empoderamento. Com a chegada de Lyda, seu nome, forma-se o triângulo. Duas mulheres e um homem, porque a essa altura Roberto já foi descartado, com seu discurso equivocado e tradicionalista.

E chega o clímax, quando Prudence e Don vão ao jantar com música e Emilio Perico canta Al Di Lá, que virou hit internacional. Al di lá del bene piú prezioso ci sei tu. Além do arco-íris, Over the Rainbow. As pessoas estão sempre correndo atrás do amor e da felicidade como algo impossível de se alcançar, embora o mestre japonês Yasujiro Ozu tenha construiído toda uma obra para mostrar que a rotina tem seu encanto e o amor pode estar muito próximo, como Dorothy McGuire descobriu em A Fonte dos Desejos (e Dorothy também descobre em O Mágico de Oz, de 1939). Como nas velhas chanchadas da Atlântida, após o momento musical, Don se envolve numa briga e foge com Prudence carregando o candelabro que vira símbolo do amor dos dois. Tudo isso pode parecer meio meloso, mas há quase 60 anos, quando o mundo e o cinema estavam mudando – pílula, minissaia, Beatles, flexibilização na abordagem do sexo e da violência nas telas -, Candelabro Italiano foi um megassucesso. No Brasil, foi um estouro. Um clássico da tendência 'travelogue', o romance com paisagens que enchem os olhos. Em tempos de pandemia é como um sonho. Viajar sem sair de casa.

Delmer Daves foi roteirista, antes de virar diretor e, aliás, seguiu escrevendo a maioria dos seus filmes, senão todos. Fez, com Humphrey Bogart e Lauren Bacall, um clássico adaptado de David Goodis – Prisioneiro do Passado, sobre um homem que faz plástica para fugir da polícia. Os 20 minutos iniciais, reproduzindo com câmera subjetiva o ponto de vista dele causaram sensação. Com Flechas de Fogo, de 1950, foi pioneiro na humanização e defesa dos pele-vermelhas. Persistiu na tendência e atravessou a década com uma série de filmes de bangue-bangue que lhe valeram a reputação de documentarista do western. A Última Carroça, com Richard Widmark; Ao Despertar da Paixão, Galante e Sanguinário e Como Nasce Um Bravo, com Glenn Ford; O Homem das Terras Bravas,com Alan Ladd; e o último, A Árvore dos Enforcados, com Gary Cooper e o tema The Hanging Tree, além de George C.Scott impressionante num raro papel de profeta do Oeste.

No fim da década, iniciou nova série – de melodramas. Não melodramas tradicionais, sobre mulheres sofredoras, mães, esposas. Incorporou mudanças comportamentais, casais adúlteros, donas de casa insatisfeitas, adoloscentes sedentas de sexo. Amores Clandestinos, com o tema Summer Place, que virou hit, No Vale das Grandes Batalhas e O Erro de Susan Slade marcaram a progressiva escalada de Troy Donahue como galã. Mas os críticos não lhe perdoaram essa fase. No Dicionário de Cinema, Jean Tulard diz que foi o que impediu seu reconhecimento como grande diretor. No western, ele foi (grande), com suas histórtias de homens resolvendo seus conflitos por meio da violência. Os filmes de mulheres são mais problemáticos, até porque não isentos de moralismo. Todo esse tempo depois, Candelabro Italiano possui valor arqueológico. O que querem as mulheres? O que queriam? Filmes moralistas como o de Daves possuem imenso charme. Expõem o case, apresentam o sintoma, mas que errem no diagnóstico.

Onde assistir:

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