Clássico do Dia: 'As Coisas da Vida' trata dos pequenos nadas que preenchem uma vida comum

Todo dia um filme é destacado pelo crítico do 'Estado', como este de Claude Sautet, que foi o poeta das ilusões perdidas e das pequenas vidas

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Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

Nas suas Mémoires de Cannes – edição do festival -, Robert Chazal, ao abordar o ano de 1970, pergunta-se como um júri cego pôde deixar passar despercebido um filme como As Coisas da Vida, de Claude Sautet? Só para lembrar, o júri presidido pelo escritor guatemalteco Miguel Angel Asturias, vencedor do Nobel, e integrado por Kirk Douglas, Karel Reisz e Volker Schlondorff, outorgou a Palma de Ouro a MASH, de Robert Altman e premiou maciçamente os italianos – melhor atriz para Ottavia Piccolo, por Metello, de Mauro Bolognini; melhor ator, Marcello Mastroianni, por Ciúme à Italiana, de Ettore Scola; e o prêmio especial para Elio Petri, por Investigação Sobre Um Cidadão Acima de Qualquer Suspeita. À parte o esquecimento de Sautet, são filmes que pertencem à história, mas Chazal registra uma declaração do próprio diretor-geral do evento, Robert Favre le Bret - “Não foi um festival que nos deixasse orgulhosos.”

O que prova o que não se cansa de dizer o atual selecionador de Cannes, Thierry Frémaux – não existe essa coisa de melhor filme. Existe sempre o melhor filme para determinado júri. Outro corpo de jurados pooderia fazer outra escolha. Consta que Asturias se opôs à premiação do Altman e foi voto vencido. Pode-se até devanear que ele talvez quissesse premiar o Sautet, por que não? Curiosa figura esse Sautet. Estreara mais de uma década antes, em plena efervescência da nouvelle vague, mas sem se identitificar com o movimento. No começo, orientou-se para o policial e foi elogiado por suas adaptações de José Giovanni (Encurralados, de 1960) e Charles Williams (Trama no Caribe, de 1964). Talvez não tenha tido sorte, e às vezes ela é decisiva – o primeiro estreou dias depois de Acossado, e foi ofuscado, aos olhos do público, pelo Jean-Luc Godard. E aí algo se passou. Sautet ficou cinco longos anos sem dirigir. Teve tempo para repensar seu cinema. Quando voltou, era outro homem – outro autor. Tornara-se um analista dos sentimentos, alojado no universo da pequena burguesia. Onde Claude Chabrol buscava, com base em Honoré de Balzac, talvez o pior da condição humana, Sautet buscava o melhor. Não é exagerado dizer que, a partir dos anos 1970, foi o que François Truffaut gostaria de ter sido.

Cena do filme 'As Coisas da Vida', deClaude Sautet. Foto: Claude Mathieu/ Rialto Pictures/ Studiocanal

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Sautet fez filmes cada vez melhores, que esculpiram seu mito. Na França, é colocado entre os maiores – seu mestre, Jacques Becker. Na vertente aberta por As Coisas da Vida vieram Sublime Renúncia, seu retorno ao policial, mas não em chave de ação, César e Rosalie, Vicente, Francisco, Paulo e os Outros, Mado – Um Amor Impossível, Uma História Simples, Coração no Inverno. Citando de memória Paulo Francis, ele, que não gostava particularmente de Sautet, encantava-se com o uso que o diretor fazia das gravatas para compor o personagem de Michel Serrault em Nellie et M. Arnaud, Minha Secretária (no Brasil). De volta a Les Choses de la Vie, o filme baseia-se no romance de Paul Guimard, que o diretor admitiu várias vezes nunca haver lido. O projeto chegou até ele como um roteiro de Jean-Loup Dabadie, aliás, o primeiro desse escritor. Os direitos pertenciam ao produtor Raymond Danon, que contratou Dabadie e foi se aconselhar com Sautet, em busca de um diretor. No período em que parou de dirigir, ele se tornara conselheiro de roteiros, e projetos. Sautet encantou-se pelo que chamou de 'banalidade mais estrita' do material.

Um homem comum, que vive um momento de crise em sua vida, dividido entre a mulher e a amante. Está numa encruzilhada, tem de fazer uma escolha, mas não consegue. Nesse momento, sofre um acidente de carro e a morte vira a solução de seus problemas. Impossível abordar um filme desses sem spoiler. As Coisas da Vida começa com o acidente e Michel Piccoli, como Pierre, vê a vida passar rapidamente. A montagem proustiana de lembranças fragmentadas compõe um quebra-cabeças e permite a Pierre resolver o enigma de sua vida justamente quando está prestes a perdê-la. O belo – e trágico – é que ele deixou atrás uma carta que, revelada, poderá mascarar a decisão que toma justamente quando o carro se arrebenta. Transfere-se, assim, para a ex-mulher, Catherine, a responsabilidade de revelar ou não a existência da carta para Hélène, a outra, e isso acrescenta um elemento de tensão ao desfecho. Como dizia o próprio Sautet, filmar a banalidade encerra um desafio. Não é porque os personagens são comuns, em situações banais, que o filme tenha de ser banal. Sautet acreditava nos momentos selecionados – por meio deles buscava uma dimensão trágica, jamais sórdida e sempre vibrante.

Com precisão irretocável, ele abre o filme com o carro que avança para a colisão inevitável. Depois, em meio aos flash-backs, o acidente é reconstituído diversas vezes – em tempo real, em câmera lenta. Durante todo o tempo, o diretor recusa-se a mostrar o personagem morrendo, ou mesmo sofrendo. Foi o conceito que se impôs – filmar a morte sem mostrá-la diretamente. Sautet beneficia-se enormente do trio de protagonistas, Michel Piccoli, Romy Schneider e Lea Massari. Em nenhum momento glamouriza seu arquiteto, Pierre, ou tenta transformá-lo em herói. Léa era, na época, a italiana do cinema francês – foi a mãe incestuosa em Sopro no Coração, de Louis Malle. Com Piccoli e Romy foi o início de uma colaboração que prosseguiu em outros – muitos - filmes. O seguinte – Max et les Ferrailleurs, Sublime Renúncia no Brasil. O retorno ao policial, Romy como a prostituta de bom coração que é manipulada por um inspetor perverso, Piccoli, e ele termina por se apaixonar. Romy, na fase pós-Alain Delon, casara-se com Harry Meyen, mas não foi uma união feliz. Uma frase do diálogo do filme - “Não posso passar toda a minha vida ao lado de um homem resignado”. Quem falava era a personagem, ou a própria Romy? Separaram-se, ele entrou em depressão, enforcou-se em casa. O filho de ambos, David, morreu naquele acidente horrível, com o ventre rasgado no portão de ferro da casa. As tragédias da vida pessoasl abaterem-se sobre Romy e ela, que havia sido Sissi, teve sua vida marcada como a da célebre imperatriz. Sautet ainda lhe deu belíssimos papeis. César e Rosalie não será o anti-Coisas da Vida? Romy consegue viver, sem ter de escolher, com dois homens, Yves Montand e Samy Frey. Encantado pelo filme, Claude Beylie escreve - “O pathos queima até o fim e, das cinzas do cotidiano, os pequenos nadas se somam para tecer um relato harmonioso e coerente.” Não será o mesmo que se poderia dizer de As Coisas da Vida – os pequenos nadas que preenchem uma vida comum?

No Dicionário de Cinema, Jean Tulard escreve que Sautet pinta sempre os mesmos personsagens, com os mesmos atores. Suas mágoas sentimentais, dificuldades financeiras. Por melhores que sejam As Coisas da Vida, Sublime Renúncia, César e Rosalie, houve ainda Vicente, Francisco, Paulo e os Outros. Yves Montand, Michel Piccoli, Serge Reggiani – e Gérard Depardieu, Valentino Orsini, os outros. Os três amigos, na faixa dos 50 anos, que têm o hábito de se reunir aos domingos na casa de campo de um deles. Estão naquele momento de abandonar os sonhos, encarar os fracassos. Bancam os fortes, mas estão fragilizados, com medo. O que quer ser escritor não sabe como resolver o impasse em que lançou seu personagem, extensão dele mesmo. A indecisão, a vulnerabilidade, temas de Sautet. E as mulheres. A esposa fiel e a infiel trocam um olhar. Cada uma sabe de si, e da outra. Nenhuma acusação, somente compreensão. A vida raramente é a sonhada. Sautet foi o poeta das ilusões perdidas e das pequenas vidas.

Morreu em 22 de julho de 2000, aos 76 anos. Romy já morrera quase 20 anos antes – em 29 de maio de 1982 -, de uma dose excessiva de comprimidos para dormir. Matou-se? É possível que sim, mas não conseguia mais dormir, perseguida por seus fantasmas. Cada noite aumentava a dose. Um dia terminaria por acontecer. Tinha 43 anos e estava no auge da beleza e do talento. O médico legista recusou-se a autorizar a autópsia. Segundo as próprias palavras, não quis profanar o mito. As Coisas da Vida recebeu o Prêmio Louis Delluc. Como havia ocorrido anos antes com o filme de Pierre Barouh em Um Homem, Uma Mulher, de Clauyde Lelouch, contribuiu para a popularidade do filme a trilha de Philippe Sarde – e a Chanson d'Hélène, com letra de Jean-Loup Dabadie, que Romy canta, e encanta. Como diz o biógrafo da atriz, Henri-Jean Servat, “la chanson était dans toutes les oreilles”.

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Onde assistir:

  • À venda em DVD

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