Clássico do Dia: 'Arruza' mostra honra e autodisciplina na selvageria da tourada

Todos os dias, o crítico do 'Estado' analisa um filme; como esse, de Budd Boetticher

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Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

Associações da Espanha e de Portugal priorizam ações para que o setor tauromáquico não seja 'salvo', como pede aos respectivos governos. Por conta da pandemia, as touradas estão suspensas. E essas associações gostariam de vê-las banidas. Enfatizam que a tourada existe para 'provocar e perpetuar a ideia de que a violência contra animais e a sua consequente morte podem ser entretenimento'. Por isso mesmo – por esse sentimento tão negativo -, fica difícil falar, como clássico, de um filme como Arruza, de Budd Boetticher. Muita gente não vai querer nem ler o texto, mas a verdade é que a atração pelas touradas é antiga no cinema.

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Remonta ao período do silencioso, a 1922, quando o maior galã da época, Rodolfo Valentino, protagonizou a adaptação do romance de Vicente Blasco Ibañez, Sangue e Areia, por Fred Niblo, o mesmo diretor que faria a prrimeira versão de Ben-Hur, em 1925. A história do toureiro dividido entre duas mulheres, e uma será sua ruína. Em seu Classic Movie Guide, Leonard Maltin diz que as cenas da sedução do herói envelheceram e ficaram risíveis, mas que as da arena continuam excitantes. Quase 20 anos mais tarde, em 1941, o remake de Rouben Mamoulián minimiza a tourada e privilegia o romance - Tyrone Power dividido entre Carmen (Linda Darnell) e Sol (Rita Hayworth). O filme ganhou o Oscar de fotografia em cores. Mamoulián orientou seus fotógrafos – Ernest Palmer e Ray Rennahan - para reproduzirem cores e formas de grandes pintores como Diogo Velásquez e El Greco.

Nos 50, o mexicano Carlos Velo voltou ao tema no formato documentário e foi indicado para o prêmio da Academia por Torero!, que reconstitui a infância e o treinamentoto que transformou Luís Procuna no maior matador de seu tempo. Justamente o toureiro como 'matador'. É um dos títulos essenciais da primeira fase de Pedro Almodóvar. Em Matador, de 1986, um ex-toureiro reencontra seu prazer matando mulheres após fazer sexo com elas, mas ele encontra uma matadora que sofre o mesmo distúrbio. Nenhum outro autor foi tão fundo como Almodóvar no aspecto 'erótico' da tourada. Entre 1956, quanfdo Carlos Velo fez seu filme, e 58, quando concorreu ao Oscar, Budd Boetticher estava construindo sua memoável série de westyerns com Randolph Scott. Já havia feito Sete Homens sem Destino, O Resgate do Bandoleiro, Entardecer Sangrento, Fibra de Herói. Ainda viria o que, para muitos críticos, é o maior de todos – Cavalgada Trágica/Comanche Station, de 1960, o mesmo ano em que ele fez seu clássico de gângsteres, O Rei dos Facínoras/The Rise and Fall of Legs Diamond.

Nos EUA, ele era um eficiente diretor B. Na França, tornou-se objeto de culto a patir da célebre análise de toureiro Bazin na Cahiers de agosto/setembro de 1957, Um western exemplar sobre Sete Homens sem Destino/Seven Men from Now, em que o crítico – considerado um dos mais importantes teóricos do cinema – destaca a estatura trágica e lamenta que o gênero seja tão pouco considerado. . Foi singular a trajetória desse Oscar (Budd) Boetticher Jr. Nascido em Chicago, em 1916, teve uma brilhante carreira no futebol americano, que abasnfdonou para se tornar toureiro no México. Chegou ao cinema como assistente, justamente no Mamoulián. Virou diretor e, entre muitos filmes de baixo orçamento, antes do seu encontro com Randolph Scott, fez, com produção de John Wayne, em 1951, Paixão de Toureiro/The Bullfighter and the Lady. Nos 60, voltou às touradas. Ligou-se a um toureiro lendário, Carlos Arruza.

Cartaz do filme 'Arruza' Foto: AVCO Embassy Pictures

No Festival de Cannes de 1980, o ex-crítico francês Bertrand Tavernier, coautor, com Jean-Pierre Coursodon, de duas volumosas (e acuradas) histórias do cinema – 30 (e depois 50) Anos de Cinema Americano -, apresentava na competição Une Semaine de Vacances, lançado no Brasil como Um Olhar para a Vida. O título brasileiro já era uma definição do cvinerma, mas Tavernier, interrogadso sobre o motivo pelo qual filmava, disse que era por uma necessidade profunda, “para me desembaraçar de um personagerm que pede socorro e quer desesperadamente viver.” Essa possessão do autor pelo personagem pode levar a processos como o que Eleanor Coppola documentou em O Apocalipse de Um Cineasta. Eleanor testemunhou como seu marido, Francis Ford Coppola, ficou obcecado por um projeto que claramente estava escapando ao controle e ameaçava destruir tudo – sua vida, a carreira, a produtora.

Apocalypse Now ganhou a Palma de Ouro ao estrear em Cannes, em 1979 – ex-aequo com O Tambor, de Volker Schlondorff. Virou um work in progress. Coppola nunca se deu por satisfeito, voltando à adaptação de Joseph Conrad, Coração nas Trevas, que transpôs para a Guerra do Vienã, em Apocalypse Now Redux e Apocalypse Now Director's Cut. Cada vez acrescenta mais material às suas versões e ninguém garante que outra(s) ainda não possa(m) surgir. Num filme muito menor, centrado num único personagem, feito com pouquíssimo dinheiro, ao longo de sete anos, Boetticher também viveu o seu apocalipse. Virou Randolph Scott nos próprios filmes, caçando implacavelmente o vilão que, no final, se revela como o outro lado (sombrio?) do herói. Será que foi isso que ele perseguiu em Arruza? Era o que o atraía na tourada, nesse confronto (psicanalítico) do homem com a besta? E de que maneira isso poderia se 'arte'?

Quando jovem, Oscar/Budd largara o esporte, que lhe moldara a fisicalidade, para iniciar outra carreira como toureiro no México. Nos 60, atravessou a fronteira. Foi num Rolls Royce, com a então mulher, dinheiro no bolso. Perseguia que fantasma? Pois perdeu tudo. Durante sete anos viveu sua estação no inferno, narrada num livro – When in Disgrace. Perdeu o carro, o dinheiro, a muilçher. Foi preso, internado num instituto psiquátrioco. A essa altura, o filme que estava fazendo já virara obsessão. Arruza, que ele conhecera na juventude, aposentara-se em 1953. Estava voltando, queria transformar-se no maior rejoneador. Um topureiro a cavalo, e os cavalos eram a outra paixão de Budd. Ele o filmou exaustivamente, dentro e fora da arena, em busca do momeento da verdade – aquele em que só existem o toureiro e o touro, num duelo de vida e morte.

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Contemporâneo de Boetticher, Francesco Rosi fez, na Espanha, em 1964, o mais ficcional de seus filmes documentados, justamente Il Momento della Verità, que no Brasil virou os Bravos da Arena. Um jovem toureiro, interpretado por um matador de verdade,. Miguel MaTeo Miguelín. A trajetória do garoto pobre que obtém reconhecimento, fama e fortuna. Em vez de toureiro, poderia ser um jogador de futebol, quem sabe? A tourada como fator de mobilidade social. O caráter litúrgico – as grandes procissões de Sevilha. O aspecto sacrificial – a morte na arena. Mesmo sendo, talvez, o menos apreciado dos grandes filmes documentado de Rosi, Os Bravos da Arena é, inegavelmente, o mais belo – no visual. Sendo a tourada tão imprevisível – como o gol -, como foi possível que Rosi e seu diretor de fotografia, Gianni di Vernanzo – assistido por Pasquale de Santis -, tenham construído aquele balé na arena?

O próprio Orson Welles, tão fascinado pela Espanha, tinha um projeto sobre tauromaquia que não levou adiante, depois do de Rosi. No Boetticher, a morte não veio ficcional, na arena, mas num acidente de carro, em que morreram Arruza e parte da equipe reduzida. Do nada, Boetticher viu-se sem personagem – sem filme. Sem amigo. Demorou muito para tirar um filme do material que possuía. Arruza chegou a poucos cinemas dos EUA, em 1971. Nunca estreou no Brasil. O repórter viu-o num precário cinema de interior, no Peru, dois ou três anos depois. Foi uma revelação. Tem momentos grandiosos, outros pungentes. Tornou-se objeto de culto entre os admiradores do grande Boetticher. Arruza explica os westerns, ou são os westerns que explicam Arruza? Na tourada, em que muitos veem apenas selvageria, Boetticher via bravura, orgulho, autodiscplina, honra.

No Guide for the Film Fanatic, Danny Peary reconhece essas características do autor, mas lamenta que Arruza, o próprio, não lhe tenha produzido a mesma empatia dos personagens ficcionais de Randolph Scott. Sem entrar no espírito, fica impossível aceitar que seja arte. Como narrador clássico – seus westerns, com os de Anthony Mann, representam o que há de mais puro no gênero, segundo Bazin -, Boetticher coloca apenas em filigrana o próprio tormento. Não faz o apocalipse de um cineasta, nem Coppola fez – foi a mulher dele. Interessa-lhe o momento mágico. O cavaleiro, o cavalo e o touro. Boetticher sobreviveu para contar a história. De volta a Hollywood, tentou retomar a carreira, mas a história de Two Mules for Sister Sara, embasada no seu conhecimento sobre o México, virou filme de Don Siegel com Clint Eastwood em 1970 – Os Abutres Têm Fome.

Fez um último filme com Audie Murphy, mas A Time for Dying foi complicado pela morte prematura do astro Audie Murphy. Boetticher casou-se de novo, criou cavalos para touradas em seu rancho em Ramona, na Califórnia. Morreu de câncer no pulmão, aos 85 anos, em 2001. Na ficha de Arruza no American Film Institute, consta a informação de que deveria passar no Festival de Cannes de 1968 – aquele que não houve. A carreira do filme teria sido diferente? A estreia foi em Tijuana, no México, onde, conta a lenda, Boetticher esteve casado por apenas 22 dias, em 1961, com uma das mulheres mais belas do mundo – Debra Paget, a dançarina do templo em O Tigre da Índia, de Fritz Lang, de 1958. Casaram-se, e separaram-se, com incrível rapídez. A ficha de Arruza no AFI informa que a estreia foi seguida de uma exibição do próprio Budd na arena, em homenagem a seu amigo morto.

Onde assistir:

  • À venda em DVD

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