Clássico do Dia: 'À Queima-Roupa' reacendeu o cinema noir

Todo dia um filme é destacado pelo crítico do 'Estado', como este longa de John Boorman que mesclou ação e sofisticação

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Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

John Boorman tinha 34 anos e um musical no currículo – Catch Us If You Can - quando deixou a Inglaterra e fez a travessia do Atlântico para realizar, nos EUA, seu primeiro grande filme, À Queima-Roupa. Posteriormente, ganhou o prêmio de direção em Cannes por Leo the Last/Príncipe Sem Palácio, incursionou pela saga arthuriana no suntuoso Excalibur e, ao evocar sua infância na ilha de Sua Majestade acossada pelos nazistas, descobriu, na ficção de Esperança e Glória, o por quê de sua atração pelo triângulo Arthur/Guinevere/Lancelot. Na realidade, sua mãe teve um affair com o melhor amigo do pai. Ele era menino, mas de alguma forma sentiu a vibração.

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Terá sido por isso que os temas da traição e da quebra de confiança sempre estiveram no centro de sua obra? Terá sido por isso que a busca pela utopia - o paraíso perdido? - atravessa alguns de seus filmes? Nos anos 1980, veio ao Brasil e realizou na Amazônia A Floresta das Esmeraldas – o ponto de vista do indígena, o acolhimento do estrangeiro, a separação entre matéria e espírito, o voo de pássaro do jovem guerreiro sobre a selva e a beleza da jovem Dira Paes – que ele descobriu. Foi a sua contribuição para o cinema brasileiro. Talvez, apesar de todos esses títulos conhecidos – e outros -, Boorman não seja um autor de fácil apreensão. Apesar das constantes temáticas – um profundo pessimismo percorre e unifica sua obra -, talvez não existam dois de seus filmes que se assemelhem. Boorman está sempre mudando para permanecer fiel a si mesmo.

Na segunda metade dos anos 1960, quando fez Point Blank/À Queima-Roupa, as mudanças de comportamentos refletiam-se na indústria e Hollywood começava a flexibilizar o uso do sexo e da violência na tela. Houve um revival do noir, dos filmes de gângsteres e detetives particulares – os private eyes de Dashiell Hammett e Raymond Chandler. Numa crítica demolidora sobre Harper, de Jack Smight, com Paul Newman, adaptado de Ross MacDonald – no Brasil chamou-se Harper, o Caçador de Aventuras -, Pauline Kael observa que um filme de detetive particular sem sofisticação é uma ignomínia. Nos 40, em Hollywood, o noir virou um território por excelência dos europeus emigrados que fugiam do nazismo. Em 1966/67, as lições da nouvelle vague estavam sendo absorvidas pela indústria.

Cena do filme 'À Queima-Roupa', de John Boorman Foto: MGM

Alain Resnais era o grande arquiteto e suas pesquisas de tempo e espaço foram assimiladas por Stanley Donen em Um Caminho para Dois/Two for the Road, com Albert Finney e Audrey Hepburn, Richard Fleischer em O Homem Que Odiava as Mulheres/The Boston Strangler, com Tony Curtis e Henry Fonda, e Boorman. Cineasta de impacto – é assim que Jean Tulard o define no Dicionário de Cinema. Formado pelos jesuítas, crítico de cinema aos 17 anos, chegou provocando polêmica como um diretor que levava a violência ao paroxismo. E tudo começou com sua adaptação de Richard Stark, um dos dois ou três pseudônimos de Donald Westtlake, celebrado – e prolífico – autor de ficção criminal dos EUA. Westlake/Stark escreveu The Hunter em 1962. O livro teve duas versões para cinema. A de Boorman, em 1967, e a de Brian Helgeland, O Troco, formatada para Mel Gibson, em 1999. Em ambas, o personagem Parker - o livro chama-se The Hunter, a Parker Novel - teve o nome mudado para Walker, na de Boorman, e Porter, na de Helgeland.

Walker persegue o ex-amigo (John Vernon), que atirou nele durante um assalto e fugiu com sua mulher. Vernon precisava da parte de Walker para pagar sua dívida com uma tal 'organização'. Com a ajuda de Keenan Wynn – um policial disfarçado? -, Walker chega até Vernon e, no confronto, o ex-amigo morre ao despencar do prédio. A ex-mulher sofre de depressão e se mata. Com a ajuda da ex-cunhada, e de Wynn, Walker elimina, um a um, os integrantes da gangue, exigindo sempre o pagamento pelo serviço feito há anos. Da base até a cúpula da organização, inclusive o mais elusivo do trio dirigente, ele não perdoa. No limite, Walker chega lá. Missão cumprida, e como um homem de caráter, abre mão do pagamento, que nunca foi o móvel de sua ação.

Pela obstinação de caçador, Walker foi comparado pelo lendário Antônio Moniz Vianna, grande crítico do extinto Correio da Manhã, a Humphrey Bogart. Walker seria um herói neobogartiano e a grande diferença em relação ao original seria a quase absoluta frieza com que executa a missão que se impôs. Chris, a ex-cunhada, entra na trama com uma função análoga à de Lauren Bacall nos thrillers interpretados pelo marido (Bogart). E aqui cabe analisar um pouco a contribuição que os atores trouxeram aos papeis. Lee Marvin passou os anos 1950 como coadjuvante, fazendo papeis de durão e/ou bad guy. O cinéfilo não se esquece de sua cena brutal com Gloria Grahame em Os Corruptos, de Fritz Lang, de 1953. No começo dos 60, fez dois filmes sucessivos com John Ford, estrelados por John Wayne – O Homem Que Matou o Facínora, e ele era Liberty Valance, o próprio facínora, e O Aventureiro do Pacífico. Logo em seguida iniciou sua carreira de astro, marcada por grandes êxitos (Os Doze Condenados, de Robert Aldrich) e que teve direito até a Oscar (Cat Ballou/Dívida de Sangue, de Elliott Silverstein, em 1965).

Um ano antes foi um dos assassinos (The Killers) na versão de Don Siegel para a curta história de Ernest Hemingway. A frieza – o profissionalismo – que empresta a Walker tem tudo a ver com o Siegel. Angie Dickinson foi a Feathers do western Rio Bravo/Onde Começa o Inferno – na série Clássico do dia. Como a garota de saloon no Howard Hawks, Angie/Feathers aumenta os perigos do homem, isto é, John Wayne. Foi a outra de Candelabro Italiano, de Delmer Daves, a femme fatale de Os Assassinos e fez história na TV com a série Police Woman, na qual foi das primeiras a empunhar a pistola e a disputar o mando das ruas com os machos de plantão (e isso sem perder a feminilidade). Marvin e Angie formam uma dupla forte, e ele, a par da destreza física, possuía uma dicção rascante que acrescenta à dureza de Walker. Mais até do que no roteiro de Alexander Jacobs, David e Rafe Newhouse, o que fez a fama do filme foi a combinação de diálogo ríspido com o virtuosismo da câmera de Philip Lathrop, a montagem de Henry Berman, a trilha de Johnny Mandel (com a canção Mighty Good Times) e o brilho da direção do jovem Boorman.

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No Guide for the Film Fanatic, Danny Peary coloca À Queima-Roupa nas nuvens, como um dos grandes filmes da década, mas assinala que o começo e o fim parecem meio confusos. Nenhum problema nisso. Hawks sempre admitiu que nunca entendeu o desfecho de À Beira do Abismo/The Big Sleep e nem por isso seu filme deixou de ser aclamado como obra-prima. Pauline Kael é outra que considera o relato exibicionista e, de certa forma, inexplicável, mas destaca – a estrela é o virtuosismo do diretor. Sempre desnorteante, o filme, segundo Kael, tem mais vigor e invenção do que Boorman consegue controlar. O cenário agora desativado de Alcatraz, onde Walker esteve preso, e as superfícies em que ricocheteia a violência – persianas, portas, eletrodomésticos, até o carro – conferem ao filme seu estilo único, e audacioso. A narrativa, ora no presente, ora fragmentada na lembrança, aproxima o diretor de experimentos narrativos de ponta do cinema europeu. A grande cena é aquela em que Angie esbofeteia Walker repetidas vezes, tentando arrancar uma reação desse homem emparedado na sua frieza.

O tema de Boorman é o retorno à vida de um homem que morreu interiormente. Cinco anos mais tarde, em Amargo Pesadelo, ele filmou um grupo de homens em plena natureza, enfrentando as corredeiras de um rio selvagem. O filme permanece vivo na memória por conta de cenas como a do duelo de banjos, um raro momento de harmonia. Mas o diretor não tem ilusões. O retorno à natureza foi também o retorno à selvageria, com a violência sexual, o estupro, exercido sobre um personagem central para fazer explodir a homossexualidade. Não admira que, na Floresta das Esmeraldas, Boorman tenha buscado uma forma de superação – o paraíso. Talvez signifique alguma coisa – psicanálise elementar – o fato de que seu filho, Charley, tenha sido o garoto branco na tribo da Amazônia e o piloto da Lutfwaffe que cai do céu de pára-quedas em Esperança e Glória. Boorman nunca teve medo de fazer seus personagens dizerem o indizível. Merlin, em Excalibur, é profético - “Nossos deuses desaparecerão diante do Deus único que está por chegar.” Em Esperança e Glória, a menina olha para o céu do qual despencam bombas e as toma por fogos de artifícios - “Que lindo!” O próprio garoto – Boorman ele mesmo -, feliz da vida porque as aulas são suspensas pelo bombardeio, não deixa por menos - “Obrigado, Hitler!” Trinta e tantos anos antes, a gênese de Jojo Rabbit?

Onde assistir:

  • À venda em DVD

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