Clássico do Dia: 'A Noite de São Lourenço' mostra opressão na Itália da 2ª Guerra

Todo dia um filme será destacado pelo crítico do 'Estadão', como este o longa dos irmãos Paolo e Vittorio Taviani que mostra como a guerra foi um tema cáustico para o cinema italiano

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Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

Paolo e Vittorio Taviani sempre foram uma dupla. Surgiram no cinema como trio e até quarteto, correalizando com Valentino Orsini e o lendário Joris Ivens o documentário L'Italia non È Un Paese Povero, de 1960. Por um tempo, Un Uomo da Brucciare e Os Fora da Lei do Matrimônio, permaneceram um trio (com Orsini). A partir de I Sovversivi, de 1967, desenvolveram a carreira em dupla que os consagrou, Sotto il Segno Dello Scorpione, San Michelle Aveva Un Gallo. Representaram, no quadro da época, um cinema ideologizado, altamente político – de esquerda. A euforia pré-revolucionária, o fim da utopia.

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Esses filmes raramente chegaram ao Brasil, apesar do prestígio comercial de que o cinema italiano autoral desfrutava no País, nos anos 1960. Uma outra história começou para os irmãos Taviani com Allonsanfan, de 1974, com Marcello Mastroianni, sobre a Itália pós-napeolônica e, como diz Jean Tulard no Dicionário de Cinema, sobre os últimos sobressaltos das sociedades revolucionárias secretas. Em 1977, veio a Palma de Ouro outorgada pelo júri presidido por Roberto Rossellini – e integrado, entre outros, por Jacques Démy e Pauline Kael -, por Pai Patrão. A par de sua qualidade, o filme é importante por ter sido produzido pela RAI, consolidando uma parceria histórica do cinema italiano com a televisão, na qual o próprio Rossellini já vinha trabalhando.

A essa altura o Brasil já acompanhava regularmente a trajetória dos irmãos. A Noite de São Lourenço, Kaos, baseado nas Novelle per Un Anno, de Luigi Pirandello. Quase 30 anos e nove filmes depois, em 2012, os Taviani ainda eram capazes de surpreender, e venceram o Urso de Ouro de Berlim, por César Deve Morrer, que propõe uma montagem de teatro dentro do filme, e num presídio, por excluídos da sociedade. Mas, como seus filmes de 1982 e 84, não há. Os episódios Mal de Lua e Colóquio com a Mãe, de Kaos, são o suprassumo da perfeição. A Noite de São Lourenço é magnífico.

Cena do filme 'A Noite de São Lourenço' Foto: RAI Italia

A guerra, a 2.ª, sempre foi um tema visceral do cinema italiano. (Da literatura, também, mas essa é outra história,) O que faz a diferença dos irmãos Taviani, nesse filme, foi sua incorporação aos mitos da cultura clássica. Na Toscana, mais exatamente em San Miniato, onde eles nasceram – Vittorio, em 1929, Paolo, em 1931 -, sempre houve, no imaginário coletivo, a noite das estrelas cadentes. Em 10 de agosto, se você vê as estrelas, nessa noite especial, pode formular um pedido a São Lourenço, e ele se realizará. As estrelas são consideradas lágrimas do santo que foi martirizado naquele dia, em 258. O filme começa com uma mãe que repassa para o seu bebê a história dessa tradição. Cecília é seu nome. Lembra a menina que foi, em outra noite de estrelas cadentes. San Mioniato, na ficção, vira San Martino, mas a resistência antifascista é real. Naquele 10 de agosto de 1944, não havia tempo de olhar para o céu e formular desejos. O comando alemão fizera uma convocação chamando a população para a igreja. Os que atenderam seriam massacrados, mas os demais, incluindo a pequena Cecília, fugiram pelos campos, rumo à liberdade, ao encontro dos aliados.

A Noite de São Lourenço é o desdobramento de um curta documentário que os Taviani fizeram lá atrás, em 1954. San Miniato, Iuglio '44. A morte de um soldado alemão levou à retaliação nazista e dezenas de moradores da cidade foram fuzilados. Esse antigo documentário somou-se ao clássico neo-realista de Roberto Rossellini, Paisà, de 1946, sobre o avanço dos aliados pela Itália, em seis episódios que registram o encontro com a população. No esquete siciliano, Joe, o G.I. de Nova Jersey, vê a estrela cadente pouco antes de ser mortalmente atingido pelo atirador nazista, levando a garota, Carmela, a vingar sua morte. No filme dos Taviani, Galvano Galvani lidera a população que se recusa a colaborar com o nazifascismo e foge ao encontro dos aliados. Ouve-se o Hino da República Italiana, uma armação para fazer crer que os ianques chegaram, mas é uma armadilha. Mara sai de casa e entra na mira do sniper. Em seu delírio, antes de morrer, confunde os alemães com aliados e sonha estar sendo levada para visitar os parentes no Brooklyn.

O approach documentário de Rossellini vira fábula com os Taviani. Em seu cinema, e em Pai Patrão, baseados nas pesquisas de Gavino Ledda – o pastor sardo analfabeto que virou estudioso da língua italiana -, eles mostravam pessoas comuns, vivendo vidas comuns, mas algo se passa na decisiva batalha entre partisans e camisas-negras, os fascistas, nos campos ao redor de San Martino, quando Cecíla recita os versos que aprendeu da Ilíada (Ettore! Ettore!). Rompem-se os limites de tempo e espaço e os partisans, como heróis homéricos, cravam suas lanças no líder fascista. Essa dimensão mágica fica definida logo no começo, na primeira imagem da narrativa de Cecília. Uma árvore cheia de frutos, uma pereira. O estrondo dos canhões derruba os frutos e da terra ergue-se o homem que troca de roupa ali mesmo, assistido pela noiva grávida – será o casamento de ambos.

Vida e morte, uma perpétua dinâmica. O casal de velhos – Galvani/Omero Antonutti e Margarita Lozano/Concetta – se reencontra para realizar, na terceira idade, o amor que parecia perdido da juventude. Margarita, uma atriz de Luís Buñuel – Viridiana, de 1961 - foi a mãe no primeiro episódio de Kaos, O Outro Filho. Ele mendiga seu afeto, mas ela o rejeita porque nasceu de uma relação forçada, um estupro. Antonutti foi sempre uma presença forte no cinema dos Taviani. Foi o padre padrone e o próprio Pirandello no colóquio com a mãe morta, em Kaos. Ao adotar a memória subjetiva da menina e transformá-la na narrativa de Cecília para a filha, os Taviani reinterpretam a vertente neo-realista de Rossellini e fazem dela um novo realismo, mítico e poético. Essa dupla dimensão voltaria especialmente no episódio do lobisomem- Mal di Luna – de Kaos. Guido Aristarco, considerado o maior crítico italiano, dizia dos filmes dos Taviani que eram documentos históricos vistos por meio da mais intensa imaginação. Como fábula que uma mãe conta à filha, possui um sentido moralizante, uma espécie de poesia contra a barbárie. Expressão da segunda é o pequeno monstro dessa história, o garoto que se veste de camiccia nera e pratica as maiores barbaridades buscando a aprovação do pai. Dessas famílias monstruosas continuamos tendo notícias no Brasil, em 2020.

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Apesar do reconhecimento e dos prêmios, os Taviani nunca foram uma unanimidade. Sempre se pode lembrar Nelson Rodrigues - “Toda unanimidade é burra.” Roger Ebert considera A Noite de São Lorenzo – The Night of Shooting Stars, em inglês – 'muito calculado' e Arnaldo Jabor, diante da magnificiência de Kaos, definiu os irmãos como 'falsos moedeiros'. Mas é importante constar – em Cannes, 1982, o festival comemorava 35 anos. Para festejar a data, o júti outorgou o prêmio especial do 35.º aniversário – para o Michelangelo Antonioni de Identificação de Uma Mulher. A Palma de Ouro foi, ex-aequo, para o greco-francês Costa-Gavras, por Missing, e para o turco Yalmaz Guney, por Yol. O júri também atribuiu um grande prêmio especial, fazendo questão de ressaltar que tinha a mesma importância da Palma. Foi para A Noite de São Lourenço. O júri, integrado pelo escritor Gabriel García Márquez e pela roteirista de Luchino Visconti, Suso Cecchi D'Amico – e também pelo diretor norte-americano Sidney Lumet -, era presidido por um nome fundamental do teatro da Itália, o criador do Piccolo Teatro di Milano, Giorgio Strehler. Vittorio Taviani, o masis velho dos irmãos, morreu em 15 de abril de 2018, aos 88 anos. Paolo segue vivo.

Onde assistir:

  • À venda em DVD

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