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Cinema digital prova sua superioridade

Por Agencia Estado
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Há pouco mais de um ano, a Sony e a Panavision atingiram o último estágio que ainda restava para que o cinema analógico pudesse ser, integralmente, substituído pelo cinema digital. Criaram a câmera 24 P Digital HD, semelhante, em qualidade de imagem, às câmeras de 35 milímetros, geral e convencionalmente usadas para gravar os filmes que passam nos cinemas. Além disso, é mais prática, menos cara, e mais resistente. Foi desenvolvida a pedido do cineasta George Lucas, que a usou em toda filmagem do segundo episódio de Guerra nas Estrelas. E é por causa de avanços como esse que a tecnologia digital tem cada vez mais se anunciado como o fator que vai revolucionar o cinema. Tudo indica que todos devem se render ao processo - até aqueles que, diferente de Lucas, são avessos à informática e efeitos especiais. A longo prazo, os diretores criarão o maior paradoxo do glossário cinematográfico: farão filmes sem filmes. Película, de 8 a 35 milímetros, será coisa do passado. São tantos os benefícios que chegarão com a nova tecnologia que torna-se difícil para as pessoas que já se envolvem no processo destacar qual deles é o melhor. "É um processo que deve tornar o cinema muito mais democrático", diz Sérgio Daniel Lerrer, primeiro diretor brasileiro a realizar um longa-metragem de ficção inteiramente digital, De Cara Limpa. "A forma será a principal mudança, o cinema vai ser muito mais artesanal", opina o cineasta Carlos Reichenbach, que está fazendo a primeira oficina dedicada à produção de um filme totalmente digital, Empédocle, o Deus das Sandálias de Bronze. "O que mais me impressionou é a qualidade da projeção digital", afirma Leon Cakoff, diretor da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que realizou no Brasil a primeira amostra de uma exibição em equipamento do gênero. "A versatilidade do produto final do processo digital é a verdadeira revolução", anuncia o professor de cinema da Universidade de São Paulo (USP) Renato Bulcão, que é também diretor e pioneiro em cinema pela Internet. Enfim, ninguém concorda sobre o que é melhor. Há ainda quem ache que a grande vantagem esteja na cópia digital, que sempre manterá a qualidade do original não importa qual sua geração - como o Presidente da Sony da América, Edward Grebow. E há aqueles que acham que a grande vantagem será a distribuição, que poderá ser feita sem mobilização de aviões, caminhões, e carregamento de latas de sala em sala - como o ator e produtor de Bounce, Ben Affleck, que fez recentemente um teste, nos EUA, enviando seu filme para exibição via satélite. Os dois últimos deram suas opiniões num grande artigo que o tradicional diário americano The New York Times publicou em novembro, também se rendendo ao mundo digital. Caio Guatelli/AELeon Cakoff, diretor da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e responsável pelas primeiras exibições em projetor digital no País Democratização - Uma câmera digital semi-profissional - ou DVCam ou câmera numérica, como também é conhecida - pode ser adquirida hoje por um preço razoável. Algumas delas, dependendo do modelo, podem custar até um terço do valor de uma câmera de película 35 milímetros, cerca de US$ 1,3 mil. Outras, como a câmera usada para fazer o episódio 2 de Star Wars, tem o preço semelhante às mais tradicionais, acima de US$ 3,5 mil no produto final, sem custos do projeto. Isso tem sido cotado por muitos diretores como um dos grandes fatores que tornará a produção de cinema mais acessível. "Na década de 70, fiz parte de uma geração de diretores gaúchos que reergueu o formato Super 8, e até chegou a criar para ele uma banda sonora. Aquele formato barato, marginal e o movimento cultural deu muita força para diretores novos, que passaram a produzir e serem vistos. O que acontece com o cinema digital hoje é semelhante, se não ainda maior", conta Lerrer, que gastou cerca de R$ 150 mil para produzir seu filme. "Isso é 10% do que eu gastaria normalmente", explica ele. Reichenbach pretende finalizar Empédocle... com menos de R$ 500 mil, sendo que se fizesse com película dificilmente sairia por menos de R$ 1 milhão, ainda mais quando há envolvida uma oficina de cinema. O próprio Lucas - para citar o exemplo de uma megaprodução de Hollywood - diz que teve só US$ 15 mil de gastos com video-tape digital para o Episódio 2, enquanto gastaria US$ 2,5 milhões se tivesse gravado em película 35 mm. Uma diferença definitiva. Lerrer acha até tardia a chegada dessa tecnologia no Brasil, que deu o primeiro passo por aqui pela lente de Eduardo Coutinho, que filmou em câmera numérica, em 1999, o documentário Santo Forte. Ele lembra que os primeiros entusiastas da democracia do digital nasceram no Dogma 95, movimento encabeçado pelos dinamarqueses Lars Von Trier (Os Idiotas e Dançando no Escuro) e Thomas Vintenberg (Festa de Família), que prega um cinema sem efeitos especiais, sem locações e com luz natural. "Mas o Dogma foi pouco divulgado, e suas idéias só atingiram os cineastas quando os filmes começaram a ser lançados", diz o diretor. Na opinião de Cakoff, filmar com pouca luz e com câmera na mão foram ótimos pretextos para o marketing característico de Von Trier: "era barulho para vender equipamento. Os caras do Dogma e o Wim Wenders são garotos-propaganda das câmeras digitais", referindo-se ao filme do diretor alemão Buena Vista Social Club, que foi filmado com essa tecnologia. O professor Bulcão discorda: ele acha que o manifesto nórdico contribuiu muito mais para uma linguagem cinematográfica do que para um comércio. "Antes disso Lars Von Trier já tinha filmado Ondas do Destino com uma linguagem semelhante, mas com um tipo de película que era bastante sensível e reproduziu uma luz semelhante ao digital", diz ele, acrescentando que "o que se tentou no Dogma foi um cinema no qual o drama e a direção dos atores é superior a todas outras coisas". Maurillo Clareto/AESérgio Daniel Lerrer, diretor do primeiro longa de ficção digital do Brasil, De Cara Limpa Linguagem - Essas alternativas ao tradicionalismo cinematográfico, representado principalmente pela indústria de Hollywood, tendem a se expandir substancialmente com o filme digital. Primeiro, porque a câmera e a tecnologia fornecem tais alternativas aos cineastas. O equipamento menor, menos pesado e menos complicado pode ser carregado e operado pelo próprio diretor e não por diversos assistentes, transferindo assim ao espectador o próprio olhar do autor da obra. A edição digital também confere uma gama de filtros, efeitos e distorções que ampliam o acesso e as possibilidades de inovação dessa linguagem. O diretor americano Mike Figgis, por exemplo, subverteu a noção de corte em Timecode, longa que em breve deve estrear no Brasil. Para contar sua história, fez um filme no qual quatro câmeras digitais captam imagens simultâneas num plano seqüência, em 97 minutos sem cortes, reproduzidas cada uma num quarto de tela ao mesmo tempo. Com esse artifício, o paralelismo que o cinema geralmente usa para dizer que duas coisas acontecem ao mesmo tempo em lugares e com personagens diferentes perdeu sentido, já que o espectador sabe tudo que está acontecendo em todos os planos do filme. E Figgis sempre exalta as câmeras numéricas, cuja flexibilidade tornou viável a produção (ele próprio operou uma das quatro usadas no filme). Além disso, há o acesso às novas mídias. O filme digital permite a conversão para qualquer outro formato (seja película, vídeo-tape, ou mesmo plug-ins como o Real Player) de maneira muito mais prática que aquilo que é normalmente feito entre películas ou delas para quaisquer outras mídias. Além disso, terá a mesma alta qualidade em qualquer um desses suportes. "No vídeo digital, não vai mais importar se a pessoa vai estar gravando um longa para Hollywood ou o casamento da filha, a qualidade da imagem vai ser sempre muito boa", exemplifica Bulcão. No fator tempo, o menor tamanho de um arquivo de vídeo digital - em comparação com um longa-metragem - permite um novo tipo de entretenimento na Internet: o cinema na rede, que está favorecendo como nunca a proliferação do curta-metragem. "Os diretores independentes, principalmente de curtas, estão tendo uma oportunidade incrível de divulgação com a Internet", afirma Reichenbach. E acessar filmes pela rede e assisti-los na tela de seu computador já é algo real. Exemplo disso são as cada vez mais numerosas distribuidoras de curtas pela Internet, como a AtomFilms e a IFilm, que disponibilizam aos seus visitantes o download de centenas de curtas, a maioria de qualidade indiscutível, e boa parte disponível unicamente através da rede. O Estadao.com.br também abriu sua galeria de curta-metragens, ainda que os filmes disponíveis tenham sido digitalizados a partir de películas. A tendência é que os curtas feitos também em suporte digital ocupem cada vez mais esse nicho. Segundo Bulcão, até mesmo longas-metragens de alta definição digital poderão ser, em pouco tempo, facilmente carregados pela Internet, por meio de softwares modernos e da expansão da banda larga. Ele revela que um grupo de hackers conhecidos como Projeto Mayo conseguiram desativar uma ferramenta do Windows que impossibilitava o rápido carregamento de um arquivo de vídeo muito grande pela Internet. Desse modo, downloads que poderiam levar duas horas para serem feitos levarão só 20 minutos. A única deficiência que restaria seria a baixa qualidade de imagem nos plug-ins de vídeo existentes atualmente. "Mas a solução existe, há tecnologia para mudar esse quadro e, o que falta, é só um plano mais eficiente de popularização desses meios", diz Bulcão. Ele explica que as telas de computador - que já possuem uma qualidade audiovisual maior que da tevê convencional - tendem a melhorar cada vez mais e incorporar funções de outras mídias. Logo, assim como um programa de manipulação de imagem pode transformar e melhorar uma foto conforme a vontade do usuário, programas e suportes semelhantes num PC qualquer permitirão o mesmo com o vídeo. Atingindo também o HDTV (Televisão de Alta Definição), que é tida como uma sofisticada porém distante tecnologia de televisão, dando passagem, no futuro, ao funcional "telecomputador" explicado por Bulcão. Marcelo Ximenez/AERenato Bulcão, professor de cinema da USP e primeiro brasileiro a disponibilizar um filme na Internet Do espaço - Outra característica importante conseqüente da versatilidade do formato digital é a qualidade de cada cópia feita do original. Ao contrário do filme, uma cópia digital nunca perde a qualidade, por mais cópias que se faça de uma master ou mesmo de outras cópias. "No mundo do cinema digital, todos espectadores - seja numa sala pequena ou grande, num mercado primário ou secundário, no começo ou no fim de da tour de um filme - vão ter a mesma alta qualidade", disse Grebow ao The New York Times, no panorama que o jornal escreveu sobre cinema digital. As cópias ainda podem ser armazenadas de maneira muito mais prática, ocupando memória num disco rígido ou num DVD. Assim, as latas enormes que levavam em seu interior as películas de filme e podiam chegar a pesar 30 quilos serão aposentadas. Além do fato de que guardar filmes exige um condicionamento cuidadoso com temperatura, limpeza e umidade, para que o material não crie fungos ou seja danificado por outros agentes externos. E há também o atuante cronológico: os internegativos e negativos do filme se desgastam com o passar dos anos, inevitavelmente. Obras que estavam com as cores esmorecidas, imagens sujas e riscadas pela ação do tempo têm sido digitalizadas e recuperadas em computador. Esses trabalhos, consequentemente, vão sendo guardados em arquivos digitais. "Fizeram um trabalho magnífico com a obra do Mario Bava, recuperando o acervo em digital e tornando disponível sua compra em DVD pela Internet", exemplifica Reichenbach. "Conseguimos nessa mostra exibir 36 horas de uma recuperação fantástica que o Instituto Gaumont de Paris fez de parte da obra de Luis Feuillade", exemplifica Cakoff. "Se tivessemos com o material do Feuillade em película, seriam mais de 200 quilos de lata", calcula ele. Processos semelhantes têm recuperado acervos importantíssimos, de Alfred Hitchcock à Louis Malle. Com filmes armazenados assim, a distribuição poderia ser feita através de cópias em DVD ou, o que é mais provável, via satélite, diretamente do espaço, como fez Ben Affleck com seu novo filme, Bounce. Os filmes, criptografados para evitar pirataria, poderiam ser decifrados e abertos somente pelos exibidores, que receberiam o sinal num horário previamente combinado com a distribuidora. "O satélite vai ficar, pois ainda é a maneira mais barata de transmitir dados em alta velocidade além das fronteiras", explica Bulcão. Ele diz que diversas alternativas quanto à programação podem surgir, desde uma grade padrão estabelecida pelo distribuidor, até a gravação em HD do filme transmitido por satélite, que dá mais independência ao dono da sala para determinar os horários que melhor lhe convêm. "Para a indústria interessada, esse é o fator mais interessante, pois a economia com distribuição pode chegar a 80%", diz Cakoff. Essa economia cortaria gastos laboratoriais, número de cópias, fabricação de latas apropriadas, frete com transportes, seguro, e outros estágios, que fazem os estúdios e distribuidores americanos gastarem US$ 800 milhões anualmente. Se projetado internacionalmente, esse valor pode chegar a US$ 4,5 bilhões. Essas tentadoras reduções percentuais só vão fazer sentido quando a maior parte das aproximadas 125 mil salas de cinema do mundo tiverem o sistema de projeção convertido para o formato digital (hoje somente 32 salas do mundo têm a tecnologia, nenhuma no Brasil). E essa conversão é a maior entre todas as discussões pois o equipamento digital é muito mais caro que os projetores mecânicos convencionais, aumentando a aversão dos donos de sala de cinema a tal tecnologia. Os aparelhos desenvolvidos pelas empresas Barco Instruments, Sony Electronics e Texas Instruments custam em média US$ 120 mil, sendo que seus primos analógicos podem custar até cinco vezes menos. A apreensão geral dos filiados à Associação Nacional dos Donos de Cinemas dos EUA chamou a atenção da Maxivision Cinema Technology. A empresa americana está desenvolvendo um projetor analógico com uma mecânica computadorizada, que puxa a película pela parte de trás, sem danificar a superfície mais sensível, numa velocidade de projeção mais rápida, de 48 quadros por segundo, diminuindo o tempo de contato entre máquina e filme (causando assim menos desgaste). Fora isso, a Maxivision propõe algo que, apesar de lógico, nunca foi antes pensado pelos fabricantes: um filme de 35 milímetros de bordas mais largas, aumentando a distância entre a bitola (o fotograma que corresponde à imagem na tela) e os furos engrenados pelo maquinário. Esses novos projetores, películas e câmeras devem chegar ao mercado norte-americano em 18 meses. A estimativa quanto aos projetores digitais é de que 1.000 salas americanas e algumas dezenas pelo mundo estejam equipadas a partir de 2002. E mesmo assim, a custa de muita cooperação entre distribuidores, produtoras e salas de cinema, cabendo a estes últimos a parte do financiamento de material tão dispendioso. O que pouca gente conhece é uma terceira e sólida opção, pensada pelo Professor Renato Bulcão. Ele levanta a adaptação de um sistema computadorizado aos projetores já existentes, anexando às antigas máquinas um HD, um monitor para controle externo, e uma telinha transparente LCD, que ficaria na frente da luz do projetor no lugar da película - semelhante a um sistema de Datashow. Restariam, assim, poucas (e plenamente possíveis) inovações para que o sistema se tornasse totalmente adaptável ao que hoje existe nas milhares de salas do mundo. "Como dono de sala de cinema, não acredito que o mundo vá jogar fora algo em que confia para comprar equipamento Barco", afirma Bulcão, com a experiência de quem criou e possui patente da kinescopia, um método inovador, e hoje imprescindível, que permite a transcrição de um material em suporte de vídeo para película. Reprodução/AECarlos Reichenbach, diretor do filme digital Empédocle, o Deus das Sandálias de Bronze Talento - As discussões sobre forma, tempo, o que é melhor e o que é pior parecem ser infinitas. Mas aquilo que é unânime em relação à tecnologia digital para cinema é, proporcionalmente, mais vigoroso que aquilo que é duvidoso. É consenso a inevitabilidade dessa tecnologia. Ela vai se sobrepor ao cinema analógico de maneira incondicional e progressiva. É só lembrar que o vídeo era a última mídia que faltava se digitalizar: o áudio, a escrita, a imagem, diversos já progrediram dessa maneira. "Eu amo a película, mas é uma invenção do século 19, e o século da película já passou. Estamos na era digital, e tentar continuar com uma tecnologia antiquada é desajeitado e caro", disse George Lucas para o The New York Times. "Enquanto eu não via, era cético. Depois que vi pela primeira vez, não tive do que reclamar. O cinema digital está vindo para ficar", reforça Leon Cakoff. "Tudo é possível, há toda a tecnologia necessária para a mudança. E se é melhor, não há porque sustentar um modelo superado de cinema", confirma Renato Bulcão. E também existe aquilo que nasceu com a película que nunca vai ser substituído pelo cinema digital ou por qualquer outra mídia: o talento, outro fator de concordância geral. Não haverá nunca tecnologia suficiente que transmita isso a um jovem cineasta. Esse dom poderá concentrar-se no artesanal defendido por Reichenbach, na democracia argumentada por Lerrer, na versatilidade explicada por Bulcão, ou na tecnologia sustentada por Cakoff. Para que o cinema continue conquistando, encantando e informando cada vez mais suas platéias, analógica ou digitalmente, o talento de seus criadores terá que estar presente.

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