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Cineasta Pier Paolo Pasolini encarava o cinema como combate

Italiano, cujo nascimento completa hoje 100 anos, foi um polemista que criticava as estruturas de poder

Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

Comemora-se neste sábado, 5, o centenário de nascimento de Pier Paolo Pasolini. Cem anos! Pense em algumas cenas antológicas dos filmes que ele realizou. Anna Magnani, consumada a tragédia, o olhar perdido na janela do conjunto habitacional de Mamma Roma. O Cristo expulsando os vendilhões do templo em O Evangelho Segundo São Mateus. Totò como o fradinho que descobre a linguagem dos pardais em Gaviões e Passarinhos. Terence Stamp em qualquer cena de Teorema, subvertendo a ordem burguesa daquela família e expondo a tristeza, a insatisfação, o sofrimento. E Nineto Davoli naquela explosão em Decameron – “Caí na m...!”

O cineasta italiano Pier Paolo Pasolini no set de filmagem de 'O Evangelho Segundo S?o Mateus' Foto: Lux Compagnie Cinématographique France

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Em 2 de novembro passado completaram-se 46 anos do brutal assassinato de Pasolini na praia de Ostia. O caso nunca foi completamente esclarecido. Pino Pelosi, um garoto de programa, foi responsabilizado e morreu – de câncer – na cadeia. Investigações paralelas, como a da jornalista Oriana Fallacci, confirmaram a participação de mais duas pessoas, numa moto. Os resíduos de pele e sangue encontrados nas unhas de Pasolini não pertenciam a Pelosi. A par de ser marxista e cristianizado, o poeta, escritor e cineasta foi um polemista que não perdia oportunidade de criticar as estruturas de poder na Itália e o que considerava o avanço do (neo)fascismo. A teoria da conspiração sempre cercou as circunstâncias de sua morte. Havia muita gente interessada em calá-lo. 

O centenário de Pasolini está sendo lembrado pela Mubi, que transforma o mês de março em celebração do artista, exibindo Accatone – Desajuste Social, O Evangelho Segundo São Mateus e Édipo Rei. Pasolini nasceu em Bolonha, em 5 de março de 1922. Cursou a universidade e foi jornalista de espetáculos numa publicação católica, Il Quotidiano. Transferiu-se para Roma, atraído por uma estética da miséria que o levou a frequentar os bairros pobres de periferia. Retratou-os em poemas e romances – Ragazzi di Vita, Uma Vida Violenta. A opção pelo lumpemproletariado não era só política. Era também sexual. Seu conhecimento da periferia, do linguajar dos pobres, levou-o ao cinema.

Escreveu os diálogos de As Noites de Cabíria, de Federico Fellini. Interpretou um papel em O Corcunda de Roma, de Carlo Lizzani, foi roteirista de Mauro Bolognini em A Longa Noite de Loucuras, O Belo Antônio – adaptado do romance de Vitaliano Brancatti - e Um Dia de Enlouquecer. Em 1961 realizou o primeiro longa, L’Accatone. Entre 1957 e 74, nunca deixou de escrever críticas de filmes, e não apenas italianos. Fellini, Bolognini, Roberto Rossellini, Luchino Visconti, Michelangelo Antonioni. Esses escritos sobre cinema – Pequenos Diálogos com os Filmes – foram reunidos num volume da Petite Bibliothèque des Cahiers du Cinéma

É possível ser marxista e místico cristão, e sensual? É a questão que, desde o começo, atravessa a obra cinematográfica de Pasolini. Suas posições são polêmicas. Defende Pietro Germi (Aquele Caso Maldito) e investe contra o icônico Sergei M. Eisenstein. Reconhece seu talento visual e o considera o ápice do formalismo russo, mas é duro na avaliação – seus filmes (de Eisenstein) são todos frustrados, com exceção de Que Viva México! Considerando-se que toda a obra eisensteiniana é uma teoria da montagem, é no mínimo surpreendente ver Pasolini dizer que admira a aventura mexicana de Eisenstein justamente porque foi seu único filme que ele não montou, e a montagem, por sinal, ele reconhece, é acadêmica. Aleluia! 

François Truffaut? Pasolini conta que foi com dificuldade que conseguiu ver Os Incompreendidos até o fim. A cada cena, mais e mais crescia seu desejo de abandonar a sala. São opiniões controversas, que vão na contracorrente do cânone. Eisenstein é tido e havido como um dos fundadores do cinema – claro que por quem não percebe que Potemkin é “obra da propaganda mais sectária”, como ele dizia (e estava certo). Truffaut, um dos ícones da nouvelle vague. A atitude de Pasolini em relação a ele beira o desprezo. Contra os mitos fundadores e os que eram considerados revolucionários quando ele se iniciava no cinema, Pasolini respondeu com uma nova conceituação – o cinema de poesia, em oposição ao de prosa. Mamma Roma foi seu manifesto, a redivinização da Magnani, que virara mito no neorrealismo. 

Cada crítico terá seu favorito entre os filmes de Pasolini. O episódio de As Bruxas – A Terra Vista da Lua, com Silvana Mangano -, o corvo filósofo de Gaviões e Passarinhos, a recriação do mito grego em Medeia, em que Maria Callas está sublime. Recapitulando, Medeia começa com o Centauro ensinando a Jasão o que equilibra o mundo – “Tutto è santo.” Termina com Medeia aos gritos, enlouquecida, depois de matar os filhos. Foi pelos agudos lancinantes da Callas que Pasolini a quis no papel. O horror do fascismo – sua negação – é outro tema presente no cinema, e nos escritos – ficcionais ou ensaísticos -, de Pasolini. Ele próprio admitia que nunca se recuperou completamente do assassinato do irmão pelos camisas negras de Benito Mussolini, nas últimas semanas da 2ª Grande Guerra. 

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Pasolini encarava os filmes – o cinema – como combate. Sua trilogia da vida, com adaptações de Boccaccio (Decameron), Chaucer (Os Contos de Canterbury) e das Mil e Uma Noites, foi um raro momento de euforia, celebrando o sexo que ele considerava fundamental. Esse interlúdio erótico chocou-se com a realidade. O fascismo voltou com força à vida italiana no começo dos 1970, na suíte de atentados terroristas que desestabilizaram a vida política da Itália. Pasolini respondeu com seu filme mais duro, transpondo o Marquês de Sade para a República Fascista de Salò, em que todos os crimes e perversões estão permitidos. Foi seu último filme. Pasolini já havia provocado escândalo com o Evangelho e Teorema, mas nada que se comparasse a Salò, Os 120 Dias de Sodoma

Ele foi morto, mas a obra segue viva. Os filmes, os livros, as críticas. Sua voz não foi calada. A potência e originalidade de Pasolini permanecem vivas no seu centenário. Antes dele – no cinema – Fellini já mostrara o que se pode chamar de dualidade, uma espécie de contradição do homem italiano. O cristianismo pode conviver com o marxismo, e no caso de Pasolini ainda havia a homossexualidade. Sua coragem de ser quem era, como era, fazia dele um personagem sui generis no panorama italiano do pós-guerra. Resta ainda abordar o tema de Pasolini e o Brasil, ou no Brasil. É possível compará-lo a Glauber Rocha – dois polemistas. Por volta de 1970, a caminho do Festival de Mar Del Plata, desembarcou no Recife com a Callas. Foram depois para o Rio. 

Luiz Carlos Lacerda, o Bigode, levanta recursos para realizar um longa sobre a experiência brasileira de Pasolini. Pretende chamá-lo de Celebrazione/Celebração. Já tem até o ator, Eron Cordeiro. Lacerda tem abordado a vida (e obra) do escritor Lúcio Cardoso, fez um documentário sobre o Rio de Janeiro nos filmes de Nelson Pereira dos Santos. Não é o primeiro a seguir a trilha de viajantes míticos no País – basta lembrar de Rogério Sganzerla e sua obsessão por Orson Welles (e It’s All True). De volta ao começo, na fábula de Gaviões e Passarinhos o desfecho evoca a estrada sem fim no final de Tempos Modernos, de Charles Chaplin. Pai e filho – peregrinos? – encontram o corvo que fala numa dialética marxista e anárquica. Os viajantes estão cansados, com fome. Assam, e comem, o corvo filósofo. Isso era a essência de Pasolini como intelectual marxista. Sentia-se livre para contestar todos os dogmas. Para sectários de todas as latitudes, era o que fazia dele um homem, um artista, perigoso. 

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