Cineasta Jeferson De vê o perigo no filme 'Nascimento de Uma Nação' e na vitória de Trump

'As pessoas estão preferindo se ofender a dialogar'; filme estreia nesta quinta

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Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

Pode parecer mera coincidência, mas, numa escala cósmica, essas coisas devem estar todas relacionadas. E começou, recentemente, na Mostra, que trouxe o extraordinário Pitanga, de Beto Brant e Camila Pitanga - o filme brasileiro do ano, talvez da década -, homenageou o ator Antônio Pitanga e colocou o cineasta Jeferson De no júri. Cereja do bolo dessa exaltação à negritude, exibiu o polêmico O Nascimento de Uma Nação, de Nate Parker, e ainda promoveu, a título de encerramento, o debate A Voz do Negro no Cinema. O Nascimento de Uma Nação estreia nesta quinta, 10, e a data também abriga a abertura da Mostra África(s) - Cinema e Revolução, que celebra o cinema criado no contexto de independência e revolução dos países africanos, no Caixa Belas Artes. E tudo isso ocorre em novembro, mês da Consciência Negra, que no Brasil toma por origem a mítica figura de Zumbi dos Palmares. Para completar, na sexta, 11, serão 185 anos do enforcamento de Nat Turner, o escravo que liderou a sangrenta rebelião de escravos retratada no longa de Nate Parker, que também é o intérprete do papel.

‘Ol’ prophet Nat’, é como Nat Turner é celebrado no folclore afro-americano. Como um profeta da consciência negra - para o discurso de supremacia branca, ele foi apenas o escravo que liderou uma revolta para satisfazer seu instinto de matar. É assim que a história oficial (branca) eterniza os eventos de 1831 no Condado de Southampton, na Virginia. Lideranças negras, artistas, historiadores queixam-se de que Nat Turner só sobrevive a muito custo no imaginário, porque foi feito todo um esforço para eliminá-lo da história. Em 1967, um livro, escrito por um branco (William Styron) e inspirado nos relatos do próprio Nat no breve período em que esteve preso, antes da execução, ganhou o Pulitzer de literatura - As Confissões de Nat Turner. Quase imediatamente, os direitos foram adquiridos por Norman Jewison, que tentou, sem êxito, fazer a adaptação, mesmo sendo um cineasta de sucesso e com outros filmes sobre a questão racial no currículo (No Calor da Noite, que ganhou o Oscar, A História de Um Soldado).

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As barricadas em Detroit e os ecos das lutas por direitos ainda eram muito recentes para que Hollywood ainda quisesse mexer no vespeiro da figura de Nat, o ‘velho profeta’. Nate Parker agora compra a briga. Seu filme está longe de ser uma unanimidade. Mas só o fato de liberar a voz do negro já o torna, no mínimo, necessário. Foi um esforço tão grande para eliminar Nat Turner da história que, comparativamente, a luta de Nate Parker para fazer seu filme nem parece tão hercúlea. Sete anos de preparação e levantamento de fundos, US$ 10 milhões de orçamento - irrisórios, nos EUA, para o tamanho da produção -, 37 dias de filmagem. O Nascimento de Uma Nação estreou no começo do ano em Sundance e ganhou dois prêmios importantes - do público e especial do júri.

Desde a época, tem alimentado polêmica - seria (é) fundamentalista. Até na vida do ator e diretor Nate Parker se buscaram atitudes incriminadoras. Um caso de estupro, do qual ele foi absolvido quando jovem, voltou às manchetes. Não é que seja irrelevante, mas, de certa forma, para o filme, é. Em seu livro vencedor do Pulitzer - As Confissões de Nat Turner -, William Styron, mesmo sendo amigo do escritor e ativista negro James Baldwin, não se furta a descrever fantasias sexuais do escravo com mulheres brancas. O filme não vai por aí, embasado em documentos que provam que Nat era casado. Sua mulher, sim, sofreu a brutalidade dos brancos.

A polêmica deve se acirrar com a vitória de Donald Trump na eleição norte-americana. Seu discurso para devolver à América sua grandeza é próprio da supremacia branca, e atitudes racistas (contra latinos) não têm ajudado a livrar sua cara. E é por isso que vale lembrar alguns tópicos do debate sobre a voz do negro na Mostra. Participavam da mesa os atores Teka Romualdo e Thogun (o rapper) e os diretores Jeferson De e Juliana Vicente. “A cada chicotada que via (no filme), pensava no genocídio do jovem negro que ocorre hoje, e não apenas na periferia. Quando olho para TV e não me vejo representada, são novas chibatadas”, contou Teka. E Juliana - “É uma dor ancestral, e atual. A gente não vê porque não quer. Quando é filme de Hollywood, a gente se permite ficar comovido, mas isso acontece o tempo todo à nossa volta.”

Agora mesmo, Juliana faz um filme sobre Ruth de Souza, lendária atriz negra brasileira, ativa (e guerreira) desde os anos 1940. “É uma história linda, mas também tem sua dureza, porque, ao longo desses 70 anos, a Ruth nunca fez uma protagonista. E até hoje as pessoas lembram o acontecimento que foi a participação dela em Sinhá Moça, na Vera Cruz, e a repercussão do filme no Festival de Veneza.” “Nesse mercado, só posso entrar como traficante, dono do morro, estuprador”, reflete Thogun. Os papéis serviram como apresentação - e ajudaram a pagar as contas -, mas ele admite que já passou por muito constrangimento. Cenas que o envergonharam, mesmo em filmes de perfil mais artístico, como O Palhaço, de Selton Mello. Como diretor, Jeferson De não aprova muitas escolhas de Nate Parker. “O filme é barulhento demais. Preferiria algo mais delicado, mas a vitória do Trump é a prova de que o momento é de radicalismo. Ninguém está querendo dialogar. As partes só querem se ofender. Eu ainda acredito no caminho do meio, do diálogo. Estou fazendo um filme sobre (o abolicionista) Luís Gama que vai por aí.

ANÁLISE - Cena forte e polêmica é a do escravo que corta com facão a cabeça do dono

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Jeferson De confessa que tremeu nas bases durante a projeção de O Nascimento de Uma Nação na Mostra. Foi na cena em que, no levante dos escravos, um deles corta com o facão a cabeça do dono e a brande como um troféu. Jeferson sentiu a cena como um exemplo do radicalismo que toma conta do mundo.

O horror, o horror. O Nascimento de Uma Nação não toma por acaso o mesmo título do clássico racista de David W. Griffith, de 1915, em que a Ku Klux Klan vem salvar a mocinha do escravo que vai estuprá-la. O ator, diretor e roteirista Nate Parker vê o nascimento da consciência negra norte-americana na controvertida figura de Nat Turner. Seu objetivo é humanizá-lo, e não é pouca coisa, considerando-se que a historiografia oficial (branca) lhe dedica pouca atenção e ainda o pinta como um assassino sanguinário.

Por mais fortes que sejam as cenas de seu filme, Nate, que também interpreta Nat, deixa claro seu partido. Nat é abusado pelo sistema escravagista, que usa sua habilidade como pregador para manter os escravos dentro do preceito bíblico de que os negros nasceram para servir. Samuel, magnificamente interpretado por Armie Hammer, sintetiza o abuso de todos os patrões. Quando Nat reage, a cena não é de júbilo, mas termina com o sublevado vomitando. É a chave. A troca de olhares (e isso não é spoiler, é História) quando está na forca, com o jovem negro que vai lutar na Guerra Civil, documenta o momento em que nasce, verdadeiramente, a nação. É admirável. / LUIZ CARLOS MERTEN