Cine PE coloca o filme como uma experiência visceral

Com discussão sobre o HIV, ‘E Agora? Lembra-me’ é o testemunho extraordinário do diretor português Joaquim Pinto

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Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

Em seu novo formato, o Cine PE – Festival do Recife contempla duas premiações, e a primeira ocorreu na noite de terça, com a homenagem a Laura Cardoso. Agora internacional, o festival tem duas competições de curtas (a mostra pernambucana e a de produções nacionais), mais duas competições de longas, ambas internacionais, com títulos divididos nas categorias documentário e ficção. Foram distribuídos os Calungas aos melhores curtas e documentários. Os segundos comportam apenas dois prêmios – melhor filme e direção. É tudo ou nada.

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Quando foi anunciada a seleção feita pelo crítico Rodrigo Fonseca, podia-se pensar que a competição de documentários seria mero formalismo. Quem já havia visto O Mercado de Notícias seria tentado a jogar suas fichas no filme de Jorge Furtado. Seria muito difícil que surgisse documentário tão bom. Melhor, então, parecia impossível. Pois ocorreu. Na segunda à noite, com talvez o menor público da história do Cine PE no Cine-Teatro Guararapes – houve alerta de enchente, devido às fortes chuvas, e apenas um terço da plateia se fez presente –, passou um dos grandes filmes recentes, e não apenas entre os documentários.

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Pense em experiências viscerais, radicais, filmes como Um Estranho no Lago, de Alain Guiraudie, e Azul É a Cor Mais Quente, de Abdellatif Kechiche. E Agora? Lembra-me, do cineasta português Joaquim Pinto, é dessa cepa. Quase três horas de duração – exatamente, 164 min. Joaquim é soropositivo – há 20 anos. O filme nos leva a compartilhar seu cotidiano. Exames, medicamentos, uma preocupação sem fim com a precariedade do seu estado de saúde.

Poderia resultar um documentário de recorte mais social, sobre o sistema hospitalar e a indústria farmacêutica, ou mesmo sobre o preconceito que os soropositivos talvez ainda sofram. Tudo isso está em E Agora? Lembra-me, mas o recorte é mais amplo.

O próprio Joaquim Pinto é o protagonista. Ele viaja nas lembranças como técnico de som e cineasta. Debilitado – cansa-se com facilidade – divide a cena com o companheiro, Nuno. Passeiam pelo campo, brincam com os cães – Nuno é um sujeito muito físico, muito dinâmico. Quando o espectador começa a pensar que, pela própria incidência da Aids, a relação é de amizade e companheirismo, e de sublimação do sexo, o sexo vem, e com toda a força. Esses cineastas portugueses não são de brincadeira. O Fantasma, de João Pedro Rodrigues, já tinha cenas explícitas de homoerotismo. E Agora? segue por essa via, mas numa só sequência. Ela não pode ser descontextualizada porque faz parte do relato de uma ligação intensa. Carnal, e não apenas.

Alguns críticos reclamaram do tempo. Três horas seriam demais. Andrei Tarkovski já ensinou que a arte do cinema está em esculpir o tempo. Joaquim Pinto, confrontado com a iminência da própria morte, poderia ter uma relação de urgência com o tempo, poderia querer viver freneticamente o tempo que lhe resta. O tempo do filme é um tempo perdido e reencontrado. Um tempo de rotina, de repetição de pequenos gestos, de contemplação. Nesse sentido, como a dupla de protagonistas, Joaquim e Nuno, os cães são personagens fundamentais, até porque um deles é doente, e na tristeza, na devoção do seu olhar para o dono, termina por incorporar-se ao conceito de finitude que rege E Agora? Lembra-me.

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Wim Wenders já fez, sobre Nicholas Ray – Nick’s Movie/Um Filme para Nick –, um filme para discutir o cinema como veículo de vida e morte. O filme de Joaquim Pinto será sempre o testemunho extraordinário do autor. É um filme ambicioso. Ao discutir a doença, a forma como o vírus age e se dissemina, o diretor faz toda uma enquete científica que metaforiza, por vezes, em cenas de predação na natureza. Até isso faz a complexidade de E Agora? Lembra-me.

E existe a trilha, com seus excertos de Beethoven, de Dvorak, de Schubert. Joaquim Pinto alarga o conceito do cinema como experiência – não apenas estética, mas a experiência compartilhada da própria vida. Seu filme, no limite, termina sendo sobre o cinema, como o de Wenders, e melhor, mais belo e intenso, que Nick’s Movie, que já faz parte da história.

Homenagem. Para completar, Laurinda de Jesus Cardoso Baleroni. Você talvez não saiba quem é, mas Laura Cardoso, sim. É o nome artístico de Laurinda. Grande dama do teatro, cinema e TV, Laura tem feito filmes desde o começo dos anos 1960. Mais de meio século diante das câmeras, em filmes como O Rei Pelé, Corisco, o Diabo Loiro, Terra Estrangeira e, claro, Através da Janela, Copacabana, O Outro Lado da Rua, etc. O Calunga especial honra uma vida dedicada à arte da representação. E Laura, feliz, pôde recebê-lo ontem.

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