Cine Ceará aplaude "Domésticas"

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Por Agencia Estado
Atualização:

Domésticas, de Fernando Meirelles e Nando Olival, foi o primeiro longa-metragem a realmente agradar à platéia do Cine Ceará. O público riu de alguns esquetes durante a projeção e aplaudiu no fim. Aliás, algumas cenas foram aplaudidas durante a exibição. O segundo longa da noite, o documentário O Fim do sem Fim, de Beto Magalhães, Cao Guimarães e Lucas Bambozzi, não teve a mesma sorte. Cumpriu a sina dos filmes que começam muito tarde e foi assistido por uma platéia ínfima. Quantidade não é qualidade: quem ficou e foi premiado por um trabalho dos mais interessantes aplaudiu no fim. Domésticas já é conhecido do público paulistano. Passou nos cinemas da cidade e teve boa carreira comercial, pelo menos em termos relativos, pois se trata de lançamento pequeno. Já foi alvo de críticas, inclusive do reparo ideológico de divertir-se à custa de quem não pode se defender, no caso a chamada turma do andar de baixo - motoristas, zeladores, faxineiros, motoboys e, principalmente, as domésticas do título. Para montar sua comédia, Olival e Meirelles simulam um mundo onde os patrões não aparecem. Só se vêem as domésticas, um mundo exclusivo do andar de baixo, onde o andar de cima só aparece por signos visíveis - no carrão que o mecânico toma emprestado, nos apartamentos de luxo e, sobretudo, na fala das empregadas domésticas. Os patrões são seres distantes, dos quais ocasionalmente se pode se queixar pela incompreensão, egoísmo etc. Mas não aparecem de fato - e não apenas porque não existem, no filme, de maneira física. Não podem aparecer porque faz parte da estratégia dos diretores evitar o conflito que existe latente na situação contraditória vivida pelas empregadas domésticas e seus patrões. Essa estratégia tem sua razão, pois o filme quer ser, comercialmente, uma comédia e acharam os diretores que, por isso, não poderia contemplar a aspereza da situação. Claro, há uma esperteza que consiste em adotar aqui e ali posições politicamente corretas, inserindo uma certa "cor de povo", música popular, falas populares, caras populares. Enfim, um simulacro de nacional-popular que não disfarça a arrogância publicitária do projeto. Quer dizer, vêem-se as pessoas simples de um posto de observação superior. O chamado ponto de vista da cobertura. Dito isso, deve-se reconhecer que, como comédia, Domésticas tem seus momentos. Alguns dos esquetes funcionam em termos cômicos, porque dirigidos com senso de timing, e as atrizes são realmente boas profissionais. Claro, orientadas o tempo todo para fazer o papel de tontas e mimetizar um sotaque artificial, o que acaba cansando. Domésticas daria mais certo se assumisse de vez o tom politicamente incorreto. Mas não teve coragem para isso e disfarçou a posição classista com uma suposta solidariedade aos retratados. Por isso perde força. E credibilidade. Mais interessante é o projeto de O Fim do sem Fim, filme sobre profissões em extinção que foi captado em diversos suportes - super-8, vídeo digital e película 16 milímetros. Essa diversidade de registros não resulta em nenhum barbarismo estético. Pelo contrário, ilustra, visualmente, como determinados métiers vão entrando em desuso, como é o caso, em termos cinematográficos do super-8, uma antiguidade que vem ressurgindo recentemente. A trinca de diretores dá voz a profissionais como sineiros, profetas, relojoeiros, parteiras, profetas apocalíticos, cordelistas, fotógrafos lambe-lambe, faroleiros, ferroviários etc. Tudo isso que está em via de ser varrido do mapa pela modernidade. Não se trata, no entanto, de uma visão saudosista. O Fim do sem Fim mostra como, no Brasil, convivem ainda elementos de modernidade e outros que, por falta de melhor palavra, se poderia denominar de arcaicos. Só que esse arcaísmo é tratado com muito carinho. Uma profissão não é apenas um meio de ganhar a vida ou preencher o tempo biológico que vai do berço à cova. É uma maneira de existir, conforma um estilo de ver o mundo e de se relacionar com os semelhantes. Quando desaparece uma profissão, desaparece uma maneira original de interpretar a existência. Nada menos. O Fim do sem Fim não propõe nenhuma linha conceitual imposta pelos diretores. Não há narração em off, aquela que diz a "verdade" do documentário, ou explicita a posição do seu autor. O conceito, se existe um, é aberto e dedutível da seqüência de episódios. Há um mundo em transformação, pouca coisa pode ser feita a esse respeito, mas sabe-se que haverá uma perda geral com o desaparecimento desses personagens sociais. Pode não haver nostalgia, mas esses personagens evocam sem dúvida um mundo mais habitável. E, nem sempre desaparecem pela necessidade imperiosa do progresso. Muitas vezes são vítimas do descaso, puro e simples. Por exemplo, só no Brasil uma profissão como ferroviário poderia ser considerada coisa do passado.

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