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Chéreau fala sobre o mistério da criação

Por Agencia Estado
Atualização:

É um filme sobre corpos, sobre a degradação dos corpos. E também é um filme sobre amor, no qual as pessoas falam muito e no qual, de repente, ocorrem silêncios reveladores, porque a ausência das palavras às vezes é a melhor maneira de expressar o que se tem dificuldade de dizer. O próprio Patrice Chéreau define assim o filme Son Frère, que participa da competição aqui no 53.º Festival de Berlim. Chéreau ganhou o Urso de Ouro há dois anos, com Intimidade (Intimacy), que ainda permanece inédito no Brasil. Suas chances parecem agora mais remotas. Son Frère (Seu Irmão) é um filme mais difícil. Durante duas horas o espectador acompanha o sofrimento físico de um homem que está morrendo. Há cenas quase documentárias da vida hospitalar. A câmera fica grudada na epiderme dos atores, acompanhando todas aquelas agulhas que furam o corpo humano e produzem sangue. Muita gente abandona as projeções de Son Frère no meio. Chéreau compreende, mas não se arrepende nem um pouco do filme que fez. "Ainda bem que o fiz para TV. Não encontraria nenhum produtor interessado numa história dessas. Na televisão, podemos propor e realizar filmes sobre temas menos comerciais. Não sai caro, há liberdade de criação", ele esclarece. Son Frère nasceu assim, como telefilme. Depois de um filme sobre sexo, Intimidade, outro sobre morte, o atual. O que significam essas escolhas do diretor? "Deve haver uma conexão, mas eu sinceramente não sei nem pretendo fazer análise para descobrir a ligação. É preciso deixar certo mistério na criação, sou um diretor racional, mas levar as coisas muito longe, nesse sentido pode ter um efeito paralisante." Ele fala muito na entrevista. Conta que nasceu numa família com dois filhos. "Meu irmão é mais velho e eu sempre achei que ele teve mais coisas do que eu. Isso de alguma forma me fortaleceu e me transformou no homem que sou." No filme, o irmão mais jovem recebe um telefonema do outro, a quem não vê há anos. Ele vem anunciar que está morrendo de uma rara doença no sangue. O espectador pensa que talvez seja aids (a sidá, como diz Chéreau, acentuando o A final). Mas não: é um problema com as plaquetas, que reduz a imunidade. A pessoa pode submeter-se a tratamento e viver durante muitos anos, mas também pode morrer bruscamente, de hemorragia. O irmão que morre é heterossexual, o pai confessa, abertamente, que preferia que o outro, gay, estivesse em seu lugar. Esse último revela uma força que não sabia possuir. "Gosto de contar histórias de amor, independentemente de serem histórias de homens e mulheres, de pares homossexuais ou de irmãos, como aqui." Chéreau fala sobre irmãos: "São relações muito complicadas. Há muitas disputas no interior das famílias." Mas ele lembra: "A fraternidade não é só uma relação de sangue, também é uma metáfora. Quando você gosta muito de uma pessoa e não vai para a cama com ela, o que você diz? Você é meu irmão, minha irmã." Ponte - Antes mesmo que o repórter possa fazer a ponte, ele lembra grandes filmes italianos: Rocco e Seus Irmãos, de Luchino Visconti, Três Irmãos, de Francesco Rosi. Há muito de sacrifício nessas relações familiares: Rocco, o idealista de Visconti, interpretado por Alain Delon, sacrifica-se por Simone, Renato Salvatori. No filme de Chéreau, o jovem também sacrifica muita coisa para ficar ao lado do irmão que necessita dele. Bruno Todeschini e Eric Caravaca são os atores. Vão fundo nos personagens. "Nunca tive problemas com meus atores, talvez porque seja diretor de teatro. Trabalhar com gente é um dos prazeres dessa profissão." Conta que ficou impressionado com o livro de Philippe Bresson e imediatamente quis adaptá-lo, mas não sabia direito o filme que queria fazer. "Em geral é assim: a gente sabe mais o que não quer." Nesse caso, sabia que não queria mexer muito com a câmera nem construir planos curtos. O filme foi saindo assim, com planos mais lentos e de longa duração, não exatamente o que se costuma ver na TV. E a câmera está sempre grudada no corpo dos atores, porque Chéreau assume como seu o projeto de cinema antropomórfico do começo da carreira de Visconti. Ele nunca teve a experiência pessoal da doença desse filme, mas já freqüentou muito os hospitais. Até que ponto a doença do sangue desse filme baseia-se em coisas que ele viu acompanhando a agonia de amigos como o dramaturgo Bernard Marie Koltès e o escritor Hervé Guibert, ambos mortos de aids? Chéreau surpreende-se um pouco com a pergunta, olha o repórter nos olhos e lembra que, sim, acompanhou a doença dos dois, todo o processo de degradação física de ambos e isso certamente lhe serviu de inspiração. Teve outros amigos que também morreram de aids, mas não faria um filme sobre a doença. A destruição da plaqueta sanguínea interessou-lhe muito mais como metáfora, mas ele diz que é raro um diretor, mesmo racional, trabalhar conscientemente suas metáforas. "Isso é coisa para vocês, críticos, teorizarem depois", diz. Fala muito, é bom repetir, mas então, de repente, ele pára por um minuto que parece uma eternidade. É quando o repórter lhe pede um comentário sobre a morte de Daniel Toscan du Plantier, o presidente da Unifrance, a agência do cinema francês, que morreu subitamente, do coração, no começo do festival. Chéreau desvia o olhar e é evidente que está fazendo um esforço para controlar a emoção. "Daniel foi um grande amigo e não apenas meu. Construiu uma rede de amizades ao redor do mundo e levou o cinema francês à situação que hoje desfruta, como alternativa a Hollywood. Estava com ele, quando morreu. Acompanhei os esforços do bombeiro que tentou reanimá-lo. O que mais posso dizer? Foi algo que me entristeceu profundamente." Dogma - Explica por que o filme quase não tem música. "Queria evitar o patetismo." Mas houve outro motivo: "Não sou particularmente adepto do Dogma, mas como colocar música num hospital? As enfermeiras tocariam violino?", pergunta e é a única vez em que ri, gostosamente, durante a entrevista. O filme tem só uma música, uma canção de um disco mais antigo de Marianne Faithfull, Sleep. "Como produtor, quis ser econômico e disse a mim mesmo, como diretor, que poderia usar só uma música. Direitos são muito caros, sabe? Escolhi essa porque, bem, havia trabalhado com Marianne em Intimidade e não pude usar a música dela no outro filme. Ela adorou, era uma forma de continuarmos juntos." Impossível falar com Chéreau sem referir-se à sua Fedra, que estreou no teatro, em janeiro, em Paris. Por que o retorno ao classicismo francês? "Porque Racine é um grande poeta, um dos maiores da língua francesa. A musicalidade de suas falas é algo muito forte e fascinante. E também porque me interessava voltar ao teatro, depois de muitos anos, com um texto clássico, coisa que nunca havia feito antes." Foi um desafio, portanto? "Sim, mas o próprio tema me fascina muito. Fedra trata da culpabilidade do desejo. Como não ser sensível a isso? Nem os mais hedonistas talvez consigam viver seu desejo completamente sem culpa."

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