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CCBB abre retrospectiva do cinema de Khouri

Por Agencia Estado
Atualização:

Pense no cinema de Walter Hugo Khouri, em qualquer um dos 25 filmes realizados pelo diretor paulista cuja obra, mais do que a de qualquer outro de seus colegas autores, tem a cara de São Paulo. A imagem que vem é sempre de uma mulher bonita. Odete Lara, Norma Bengell, Dina Sfat, Lilian Lemmertz, Barbara Laage, Selma Egrei, Vera Fischer, Maitê Proença, Jacqueline Myrna, Genevive Grad, Kate Hansen. A lista é interminável. Chega a Cláudia Liz, a top model que Khouri transformou em atriz. A Andréia Dietrich, sobrinha-neta de Marlene Dietrich, que ele colocou em seu, por enquanto, último filme, Paixão Perdida. Por enquanto, porque Khouri ainda tem planos de realizar pelo menos mais um. Ele tem dois roteiros prontos. Chamam-se, sugestivamente, Luz e Fogo. Um intimista, com poucos atores; outro, um projeto mais caro, com filmagem no exterior. Khouri não esconde sua predileção pelo primeiro. Quer fazer, precisa fazer Luz. O filme oferece um grande papel a uma atriz. De novo a mulher. A luz do cinema de Khouri é ela. Começa amanhã no Centro Cultural Banco do Brasil uma ampla retrospectiva da obra do diretor. Serão exibidos 16 filmes, o equivalente a 2/3 de toda a obra khouriana. Haverá debates, exposições de fotos. Renato Pucci Jr. vai dar uma palestra. É o autor de O Equilíbrio das Estrelas - Filosofia e Imagem no Cinema de Walter Hugo Khouri. Pucci poderia falar da influência de Schopenhauer sobre o projeto estético do cineasta. Vai falar sobre as mulheres no cinema de Khouri. O diretor ofereceu a Norma Bengell um de seus mais belos papéis, em um de seus melhores filmes: Noite Vazia, de 64. Ela faz uma das prostitutas que os personagens interpretados por Mário Benvenuti e Gabriele Tinti levam para casa, para noitada de prazer que termina sendo mais uma noite vazia na vida dos protagonistas. Os críticos gostam de dizer que Noite Vazia marca o nascimento do personagem emblemático da obra de Khouri: Marcelo, que vai aparecer em praticamente todos os filmes feitos depois. Marcelo, com esse nome, aparece mesmo em As Amorosas, de 68, interpretado por Paulo José. Mas seu embrião está nos personagens de Noite Vazia: representam, um na sua voracidade sexual, outro na busca interiorizada de difícil realização plena, as duas faces de Marcelo. O que ama e o que despreza as mulheres. Norma foi vedete e cantora. Irrompeu no cinema com sua imitação de Brigitte Bardot em O Homem do Sputnik, de Carlos Manga, no fim dos anos 50. Em 1962, participou de O Pagador de Promessas, de Anselmo Duarte, único filme brasileiro a ganhar a Palma de Ouro no Festival de Cannes. Naquele mesmo ano, fez com Ruy Guerra Os Cafajestes. O filme tornou-se um marco da renovação do cinema nacional nos anos 60, da corrente chamada de Cinema Novo. E Norma tem aquela cena estonteante de nu na praia. É uma linda mulher. Poderosa como atriz, expressando a dor e a humilhação de sua personagem aviltada pelos homens. A prostituta de Noite Vazia também sonha com algo que nenhum homem pode lhe dar. Uma vontade de purificação. Norma se lembra bem do cuidado que recebeu de Khouri para criar sua personagem. Mas sua ternura por Noite Vazia vai além do reconhecimento por um grande papel, num grande filme. Foi na rodagem do filme, no próprio estúdio da Vera Cruz, em São Bernardo do Campo, que ela se casou com seu colega de elenco, Gabriele Tinti, que faz a metade, digamos, idealista de Marcelo. Norma amou aquele homem. Quando fala nele, há fervor que deixa perceber que ainda o ama. Odete Lara não tem um motivo assim tão particular para gostar do filme. Atriz de grandes papéis em filmes de Nelson Pereira dos Santos (O Boca de Ouro), Antônio Carlos Fontoura (Copacabana Me Engana e A Rainha Diaba) e Glauber Rocha (O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro), Odete já havia feito Na Garganta do Diabo com o diretor, nos anos 50, quando ele a chamou para o papel da outra prostituta de Noite Vazia. Odete, com um penteado que realça sua aparência leonina é a profissional da noite que perdeu suas ilusões. Faz o que for preciso, como simular a relação homossexual que excita os homens. É dura na queda. É deslumbrante. De todas as mulheres khourianas, Norma e ela são as maiores, talvez porque o filme com as duas seja uma obra maior do diretor. A vida da própria Odete mudou muito depois desse filme. A grande atriz era uma mulher que viajava nas drogas e na vertigem sexual. Um dia, chegou ao fundo do poço e renasceu para a vida espiritual. Ela acaba de voltar da Escandinávia. Foi conhecer a Finlândia e a Noruega. E esteve na Suécia, perto da casa de Ingmar Bergman. "Eu era bergmaniana, em Na Garganta do Diabo." O filme é da primeira fase de Khouri, quando ele tentava assimilar e levar o mais longe possível a experiência do mestre sueco. E depois, com Noite Vazia, começou a fase inspirada em Michelangelo Antonioni, que se foi diluindo porque Khouri desenvolveu estilo próprio. "Trabalhar com o Walter foi uma de minhas grandes experiências", diz Odete Lara. "Ele sabe dirigir os atores, sabe criar um clima no set para conseguir tudo aquilo que quer; e consegue." O que ele quer é um desnudamento emocional, mais do que físico. "O Walter olha para dentro da gente e sabe onde buscar o que pretende." Por isso mesmo, ela viveu uma experiência curiosa. Estava havia muitos anos sem ver Noite Vazia, quando, um dia, estava em Paris e o filme passava numa retrospectiva que o Centro Georges Pompidou, o Beaubourg, dedicava ao cinema brasileiro. Odete viu o filme com sensação de estranhamento. Não se identificava mais com aquela mulher, nem mesmo com a atriz que buscou dentro de si mesma a força para viver aquela mulher. A jornada de Odete no budismo deixou-a zen. Ela se achou linda na tela, muito bem produzida e fotografada. "Norma e eu só não ganhamos o prêmio de melhor atriz, em Cannes porque a presidente do júri naquele ano era a atriz americana Olivia de Havilland, uma mulher muito puritana que ficou chocada com as cenas de sexo do filme." Khouri tem explicação para seu fascínio pelas mulheres. "Talvez não seja o único, mas um dos grandes fascínios do cinema está no fato de nos permitir trabalhar com mulheres. Você vê que os grandes diretores todos tiveram mulheres maravilhosas, atrizes que os inspiraram. Josef Von Sternberg e Marlene, Antonioni e Monica Vitti, Federico Fellini e Giulietta Masina, Bergman e Liv Ullman, Jean-Luc Godard e Anna Karina, Roberto Rossellini e Ingrid Bergman, Alfred Hitchcock e suas loiras, os japoneses tinham mulheres fantásticas." O cinema, para ele, é mulher, uma maneira de lidar com ambigüidades, sutilezas, com os climas eróticos que emanam do corpo das mulheres. "Os homens são importantes no cinema, no meu cinema também, mas não como as mulheres." Renato Pucci Jr. diz que esse fascínio de Khouri pelo universo feminino não faz dele um cineasta feminista. Mas também não é machista, que está só usando a beleza de suas atrizes, transformando-as em objetos de desejo do público. É alguma coisa no meio. Mas uma coisa é certa. O desejo, no cinema de Khouri, tem rosto e corpo de mulher.

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