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Casanova de Fellini, entre o sublime e o grotesco

No filme que fez sob encomenda e é relançado em SP, com cópia nova, o grande diretor italiano vai além do retrato histórico e humaniza a imagem do sedutor vulgar

Por Agencia Estado
Atualização:

De que maneira é possível fazer uma obra-prima se não se tem simpatia pelo personagem central? Essa é a pergunta que o espectador tem vontade de fazer quando vê o deslumbrante Casanova de Fellini, que reestréia hoje na cidade com cópia nova. A adaptação das Memórias de Giacomo Casanova era uma encomenda feita a Fellini, que a havia prometido em troca de outros projetos, tidos como menos comerciais, incluindo o de Satyricon. Fellini leu a tediosa autobiografia do veneziano. Não ficou fascinado. Longe disso. Casanova lhe pareceu um sedutor vulgar, contabilista do amor, amante preocupado em bater recordes, um adepto do sexo mecânico. Retratou-o com toda a antipatia. Teve de aceitar o norte-americano Donald Sutherland para o papel, e modificou-lhe as feições para que ficasse parecido com o perfil aquilino atribuído a Giacomo Casanova. A saída de Fellini foi exacerbar o desgosto que o personagem lhe causava. Transformou o sedutor num bufão frívolo, entediado, vivendo num mundo alienado, do qual ele era um dos expoentes. Mas esse retrato não se faz sem ternura nem sem doses fartas de imaginação. Quem assiste à abertura do filme, uma feérica festa náutica em Veneza, já tem idéia do espetáculo que virá a seguir. Fellini podia tocar um projeto por imposição comercial, mas o transfigurava completamente por obra de sua imaginação. A estratégia de construção ficcional de Fellini manda que se alternem cenas sublimes com grotescas. É mais do que estratégia: uma visão de mundo. Assim, por exemplo, assistimos ao pobre Donald Sutherland protagonizar cenas ridículas, como uma seqüência de sexo testemunhada por um estranho pássaro mecânico e, noutra, disputando um grotesco campeonato de orgasmos com um criado. Essas imagens, aliás, ficaram longos anos proibidas pela censura no Brasil. Bem, o "artificialismo" de Fellini é algo que já se conhece. É evidente que ele não se dispôs a filmar na Veneza real. Reproduziu-a em Cinecittà, com seus edifícios históricos e canais. A abertura, com cenas do carnaval de Veneza, colocou os produtores com os cabelos em pé. Fellini reproduziu em estúdio o Canal Grande com a ponte do Rialto e colocou mais de 600 figurantes em cena. Hedonismo - A grandiloqüência não é gratuita. Era preciso que o espectador fosse preparado para ingressar na vida de um personagem da Ilustração, habitante de um mundo de sociedade frívola e dispendiosa, no qual a festa tem um papel particular. Por isso, é preciso prestar atenção a tudo que cerca o personagem - os cenários, os objetos de cena, as roupas. O brilhantismo dessa recriação, que já se chamou de rococó, faz de Casanova um objeto cinematográfico que vai além do filme meramente histórico. Fellini fala de um tempo distante para falar da nossa própria época. Retrata esse personagem oco (o ´hollow man´, de que falava Eliot) porque nele a aparência passou a ser o mais importante e comanda todo o resto. Casanova não ama as mulheres, ele as usa, e por elas é usado, como vê depois. Não habita as coisas nem os lugares, apenas passa por eles. Não usufrui do luxo ou do conforto, apenas os ostenta, porque nele tudo é superficial, mesmo a fruição. Esse personagem não é um retrato de época. É uma advertência.

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