'Carol' é um drama de época sobre relações ‘fora da norma’

Filme com Cate Blanchett e Rooney Mara flagra situação bastante hostil nos Estados Unidos no início dos anos 1950

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Por Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

Patricia Highsmith conta em texto a inspiração para Carol. Ela acabara de terminar Strangers on a Train, que seria filmado por Alfred Hitchcock e lhe abriria as portas da fama. Mas, no momento, estava sem grana e sem inspiração. Em falta de opção melhor, resolveu pegar um trabalho temporário de Natal numa loja de departamentos. Vendia bonecas e achava o emprego um porre. Em todo caso, foi nele que teve o vislumbre de uma compradora que a deixou completamente sem fôlego. Essa mulher entrou, encomendou uma boneca, pagou e sumiu. “Era como se eu tivesse tido uma visão”, escreve. Esse pasmo sensual está na origem de The Price of Salt, título original do livro.

Partindo dessa visão, Todd Haynes, possivelmente, não teve dificuldade em escolher Cate Blanchett como a protagonista de Carol. A vendedora Therese (no livro, a narradora, isto é, Patricia) é vivida por Rooney Mara. Há um contraponto óbvio entre elas. Rooney é bonitinha e discreta. Mignon, veste-se de maneira simplória, correta. Blanchett é “a” diva. Loura, exuberante, entra na loja com um daqueles casacos de pele de quatro dígitos. Tudo nela é fino, refinado mesmo, esbanjando poder e autoconfiança. Chique até demais, criticam alguns espectadores.

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Mas então estamos na órbita da proposta de Haynes, que é o de estabelecer um contraponto entre a mulher mais madura, rica e glamourosa e a jovem pobre, cheia de sonhos, iniciante e com esperança de um dia virar fotógrafa. E a começar dessa diferença chocante entre as duas, estabelecer um romance e, em um certo momento, fazer a balança oscilar para outro lado e mostrar as fissuras de quem é tão segura de si e a força de quem se mostra tão frágil de início. São os caminhos cruzados do amor e que acontecem com frequência. Ainda mais num filme que dialoga com o melodrama em mais de um ponto.

Também este é um fato estranho, ainda mais vindo do inovador Todd Haynes, diretor no entanto assumidamente camaleônico. Quer dizer, sem compromisso com uma assinatura ou um estilo ou uma linha autoral coerente, por assim dizer. Varia, diz, conforme o material que tem nas mãos e a história a ser contada. E esta, lembremos, é uma história de época. Estamos nos Estados Unidos, no início dos anos 1950, quando o conservadorismo de costumes nem sequer permitia a uma mulher sonhar com um relacionamento homossexual sem que isto tivesse sérias consequências para sua vida. Ainda mais, como no caso de Carol, casada, de alta sociedade, com uma filha pequena, cuja guarda pode perder por causa do romance com Therese.

Nesse sentido, Carol é um pouco isso – um romance de costumes, que flagra a situação de uma época, bastante hostil para desvios das “normas” de conduta. Patricia Highsmith disse que o livro, de início recusado por sua editora, se transformou em grande sucesso porque ousava tratar a questão lésbica de maneira mais aberta. E sem condenar as personagens envolvidas às profundezas dos infernos, conforme o hábito corrente. Conta que recebeu centenas de cartas de pessoas agradecidas porque se viam retratadas no livro. Hoje, o relato pode parecer até um tanto anacrônico. Mas, se observarmos bem de perto, e sem tanta efusão, veremos que o drama de Carol e Therese não se acha tão desconectado assim do presente. 

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