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"Carandiru" é melhor filme em partes do que no todo

Por Agencia Estado
Atualização:

É o plano mais belo de Carandiru: o cachorro avança pelo corredor cheio de cadáveres, farejando os mortos no massacre ocorrido no presídio. A câmera acompanha o movimento até que ocorre o inesperado: o cão policial defronta-se com um daqueles gatos que os detentos criavam no Carandiru. O diretor de fotografia Walter Carvalho conta que o plano do cachorro foi planejado, mas o encontro com o gato foi um acidente de filmagem. Está aí, nessa imagem que bate na tela por alguns segundos, apenas, a metáfora mais forte do filme que Hector Babenco adaptou do livro de Drauzio Varella. Carandiru gerou uma expectativa excepcional e isso nunca é bom para filme nenhum. É fácil dizer que decepciona. Mas você precisa ver Carandiru para estar em sintonia com o País e seu cinema. Babenco cria cenas e personagens fortes, mas o filme é melhor em partes do que no todo. Vários personagens do livro fundem-se para criar um só no filme. É normal. O importante é que Carandiru, como Estação Carandiru, adota o ponto de vista dos presos. Babenco diz que fez, 20 anos depois, a seqüência de Pixote. Desde que chegou ao Brasil, o diretor investiga a realidade para decifrar o enigma que o País representa para ele. A falta de cidadania do brasileiro o impressiona, agride mesmo. Ele só vê cidadania quando o brasileiro se perfila para ouvir o hino, antes do futebol. Pôs isso no filme e criou uma correspondência com a Aquarela do Brasil, no desfecho. É uma forma de insistir na perplexidade: que País é esse? Pouco sério, disse o general De Gaulle. Fica na contramão de Cacá Diegues em Deus É Brasileiro, que, afinal, é uma comédia. Aqui, a barra é pesada. Drauzio vira um personagem fraco, mas faz o elo para os presos que contam as histórias que Milton Gonçalves dirá mais tarde que são mentiras. Após a exposição desses casos exemplares e da relação de poder no presídio, a visitação é o grande momento de integração das várias tramas e personagens. Seguem-se duas ou três cenas preparatórias - a briga da cueca, o futebol - até o banho de sangue. O massacre é um ato de carnificina, executado de forma tão brutal que deixa o espectador mais perplexo do que indignado. Após o massacre, nova correspondência. Os sobreviventes voltam a falar para a câmera, como num documentário. O cão e o gato são as pontas dessa tragédia entre presidiários e a repressão ditada por interesses eleitoreiros ("Há uma eleição e o governador não vai deixar a cadeia explodir", diz um detento). Algumas histórias fecham-se mal pelo esquematismo: a loucura de Wagner Moura, a culpa devoradora de Milhem Cortaz, que faz Peixeira. A necessidade de expiação desse último precede o massacre. Num cinema narrativo como o de Babenco, pode-se fazer, a partir daí, uma leitura que lança o filme num terreno de dubiedade que não era o que o diretor queria. Mas existe o Salmo 91. A verdadeira redenção de Carandiru vem por ali.

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