Caixa traz seis filmes clássicos do diretor Orson Welles

Box traz longas como 'Soberba', 'A Dama de Shangai' e 'Verdades de Mentiras'

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Por Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

Orson Welles ficava enfurecido ao ser lembrado como “diretor de Cidadão Kane”. Como se fosse autor de uma única obra, o que está longe de ser verdade. Mas, o que fazer, se Kane se tornou o clássico dos clássicos com o passar do tempo? Essa caixa, O Cinema de Orson Welles (Versátil), serve para mostrar que ele foi muito mais do que autor de uma única obra-prima.

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Em três DVDs, temos seis filmes que, se não chegam à altura de Kane (e qual chega?), demonstram o talento diversificado do autor: O Processo (1962), A Dama de Shangai (1948), Verdades e Mentiras (1973), Grilhões do Passado (1955), Soberba (1942) e É Tudo Verdade (1942/1993).

Comecemos pelo fim, pelos dois filmes associados por vias tortas – Soberba e É Tudo Verdade, que compõem o terceiro DVD. Quase imediatamente após o lançamento de Cidadão Kane, Welles começou o projeto de Soberba. A carreira de Kane foi prejudicada pela campanha contrária, movida pelo magnata William Randolph Hearst que, com razão, via-se retratado no personagem. Kane foi mal de bilheteria, teve campanha abaixo de suas possibilidades no Oscar e terminou com a autonomia do diretor cassada na empresa RKO. Welles conseguiu rodar Soberba, mas não pôde acompanhar a montagem.

Visto hoje, Soberba mostra suas possibilidades extraordinárias, porém irrealizadas. Durante a montagem do material, Welles havia sido mandado ao Brasil para rodar um filme sobre o carnaval. Faria parte da Política da Boa Vizinhança, de Roosevelt, empenhada em garantir a adesão do Brasil à causa aliada na 2.ª Guerra Mundial. Seria apenas um trabalho de propaganda, de aproximação política. No entanto, Welles levou-o a série.

No Rio, fez amizade com Grande Otelo e Herivelto Martins. Subiu favelas, tornou-se amigo de sambistas, apreciou sua arte e condoeu-se com a miséria. Passou a filmar tudo isso, para crescente irritação da RKO. Descobriu então a história dos jangadeiros que haviam navegado de Fortaleza ao Rio para exigir direitos trabalhistas a Getúlio Vargas. Usou os próprios pescadores no elenco e o caso virou tragédia quando o líder, Jacaré, morreu afogado durante uma encenação. Fim do filme, que só veria a luz em 1993, após ser recuperado a partir de latas de negativos abandonadas.

É quase o fim de Welles, pois, durante essa tempestuosa estada brasileira, prosseguia a montagem de Soberba. Muito material foi cortado, a história tornou-se incompreensível em certos pontos e o final foi alterado de modo a se tornar um happy ending. Não há entrevista de Welles em que ele não se refira, magoado, à maneira como destroçaram Soberba. Nos extras, há uma reveladora entrevista com o crítico Bill Krohn.

A partir de então, Welles viu-se condenado a uma carreira marginal. Com dificuldades de acomodar seu gênio à desconfiança dos estúdios e às privações, passou a filmar especialmente na Europa. O que deixou é incrível e, mais espantosa ainda a ideia sobre o que poderia ter feito caso a história fosse diferente.

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O Processo, por exemplo, é uma brilhante versão de Kafka, banhada pelo surrealismo e também por um diálogo lúcido com o expressionismo alemão. A Dama de Shangai é Welles trabalhando no registro do filme noir, tendo como protagonista a estupenda Rita Hayworth, no entanto com uma cabeleira loira que não a beneficia. O duelo na sala de espelhos de um parque de diversões tornou-se de antologia.

Grilhões do Passado traz Welles como misterioso Mr. Arkadin, milionário de história duvidosa, que contrata alguém para investigar seu próprio passado. Por fim, há o testamento de Welles, seu último filme, Verdade e Mentiras, cujo protagonista é um famoso falsário de quadros, o húngaro Elmyr de Hory. Poderosa reflexão sobre o real e o ilusório, não deixa também de meditar sobre a natureza do cinema – essa invenção circense, “sem futuro”, como dizia Louis Lumière, e que, no entanto, talvez seja a mais acurada ferramenta criada pelo homem para prospectar sua natureza. Ninguém a domina por completo. Poucos a utilizaram tão bem Welles.

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