Buñuel, segundo ele mesmo e o neto

Diego Buñuel está em São Paulo rodando uma série para TV e fala do avô, cuja autobiografia é reeditada no País

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Por Antonio Gonçalves Filho
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SÃO PAULO - O último roteiro que o cineasta espanhol Luís Buñuel (1900- 1983) escreveu, mas não realizou, repousa numa "tríplice cumplicidade": ciência, terrorismo e informação. Esses três dos quatro cavaleiros do Apocalipse, como costumava se referir a eles, também preocupam seu neto, o francês Diego Buñuel, que está em São Paulo rodando a terceira temporada da série televisiva Zonas de Guerra, do National Geographic Channel (NatGeo). A cara do avô quando moço, Diego, aos 34 anos, diz que se sente seu herdeiro em todos os níveis, do profissional ao sexual, passando pela paixão fetichista por armas de fogo - a exemplo do diretor, a franqueza do neto por vezes desconcerta, mas nunca choca. "Sou hiperssexuado como Pepe", diz, logo na primeira frase de sua entrevista, em que falou mais da autobiografia de Pepe - aliás, Luis Buñuel -, pioneiro do cinema surrealista, do que do próprio projeto, uma série sobre as dez cidades mais violentas do mundo.

 

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A autobiografia do avô, Meu Último Suspiro (Mon Dernier Soupir), escrita com a colaboração de seu roteirista habitual, Jean-Claude Carrière, estava fora de catálogo havia mais de duas décadas. Num lançamento conjunto da editora Cosac Naify e Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, ela volta às livrarias neste fim de semana em nova tradução (de André Telles.) Após todos esses anos, a autobiografia do avô de Diego continua inspiradora para ele, um jornalista premiado que, trabalhando para o jornal semanal da Otan, se tornou correspondente de guerra no Afeganistão, Congo e Iraque, onde rodou um premiado documentário de 90 minutos (Iraq: At Hell’s Gate) sobre a intervenção americana no país.

 

Diego justifica esse seu interesse por zonas de conflito como uma herança intelectual do avô, que adorava. "Não sei se você se lembra, mas o final de seu último filme, Esse Obscuro Objeto do Desejo (de 1977), é premonitório, revelando sua perplexidade diante dos atos terroristas." De fato, no epílogo do testamento cinematográfico de Buñuel , um alto-falante anuncia um ato terrorista do grupo extremista Brigada do Menino Jesus, enquanto o casal central (um senhor burguês e sua jovem amante pobre) passa por uma vitrine na qual uma mulher costura um véu ensanguentado. Os dois começam a discutir quando outra bomba explode, tirando a vida do casal. O amor, como um ato devastador de subversão, é punido por uma sociedade que só conhece o ódio. O caos reina, enquanto um vírus dizima a população de Barcelona.

 

"Ateu, graças a Deus", como o avô, Diego não veio ao Brasil atrás de pastores evangélicos ou chefes do tráfico, definidos por ele como profissionais da violência - a primeira verbal, a segunda, física. No primeiro dia de filmagem de Zonas de Guerra, uma série passada em cidades onde reinam a destruição e a desordem, visitou uma fábrica de carros blindados. "Fiquei espantado com o número deles em São Paulo", diz Diego, cuja proposta de documentar a violência paulistana deu lugar a um programa em que a principal estrela será um grafiteiro, que arrisca a vida pichando túneis para "limpar" a cidade. "É intrigante essa sua ideia de que seus grafites podem acabar com a violência da urbe."

 

Manias todos têm. Buñuel cultuava algumas. Gostava de armas e chegou a guardar 65 revólveres e fuzis em casa. Vendeu a coleção em 1964, convencido de que ia morrer naquele ano. Não morreu, mas perdeu um ouvido, em Zaragoza, praticando tiro em recinto fechado. Diego conseguiu recuperar uma ou duas armas , porém nunca as usou. Quando propôs à NatGeo a série Zonas de Guerra, contrapartida à violência "estereotipada" da mídia, decidiu revolucionar o gênero do documentário, colocando-se diante da câmera como ator e personagem - ele experimentou a loucura da guerra ao lutar na guerra da Bósnia. "Sou ambicioso como meu avô, que se propôs - e conseguiu - revolucionar a linguagem do cinema com o surrealismo de Um Cão Andaluz."

 

O filme inaugural do surrealismo, que completa 80 anos, está sendo lançado (leia texto nesta página) pelo selo Cult Classic junto a Simão do Deserto (1965), título menos conhecido de Buñuel, sobre São Estilita, eremita do século 4º que passou mais de 40 anos no topo de um coluna num deserto da Síria. "Meu avô fala muito sobre esse trabalho na autobiografia, mas meu preferido ainda é O Anjo Exterminador, de 1962", comenta Diego. O avô Buñuel não concordaria. Dizia que o tempo curto das filmagens o atrapalhou. Mais opiniões do cineasta sobre os próprios filmes se encontram na última parte de sua autobiografia. Nela Buñuel revela os escritores de quem gosta (Sade) e detesta (Borges, Steinbeck). Polêmica era com ele mesmo.

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