Bressane divide platéia em Cannes

Vaias e aplausos misturaram-se ao final da sessão de seu Filme de Amor, cartaz da Quinzena de Realizadores

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Por Agencia Estado
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Dois filmes mornos na mostra competitiva e o choque do novo Julio Bressane na Quinzena dos Realizadores deram o tom do Festival de Cannes durante a jornada de ontem. Nem o chinês Purple Butterfly, de Lou Ye, nem o francês La Petite Lili, de Claude Miller, chegaram a empolgar. Nem muitas vaias nem aplausos. Temperatura amena. Já Filme de Amor, de Julio Bressane, apresentado na mostra paralela Quinzena dos Realizadores, provocou o efeito normalmente causado pelos trabalhos do diretor. Primeiro, debandada seletiva de parte da sala. Depois, divisão equânime entre vaias e aplausos no fim da sessão. Diga-se que os aplausos acabaram por prevalecer, devidamente segurados pela claque brasileira presente na sala Jacques Doniol-Valcroze, do hotel Noga Hilton, na Croisette. No palco, Bressane apresentou seu trabalho como "um pequeno filme sobre um grande tema". De fato. Esse grande tema é, simplesmente, o amor e o desejo. Nada menos. O filme, como outros de Bressane, parte de um estímulo intelectual. Há muitos anos ele leu o ensaio de Aby Warbung sobre o Nascimento de Vênus e A Primavera, de Botticelli, pinturas nas quais ele identifica o mito das três graças, o amor, a beleza e o prazer. Esse é o ponto de partida, devidamente modificado. As três graças são mulheres. No filme de Bressane entra um homem. Uma sinopse diria que esse trio, Hilda (Bel Garcia), Matilda (Josie Antello) e Gaspar (Fernando Eiras) se reúne num fim de semana num sobrado do Rio antigo e entrega-se ao prazer do sexo. Depois, os personagens retomam a vida normal, ou seja, voltam às suas humildes profissões. Num filme de Bressane essa explicação em linha reta não quer dizer nada, ou quase nada. Deve-se prestar atenção aos aspectos formais em jogo, como as mudanças do preto-e-branco para cores (aliás, fotografia magnífica de Walter Carvalho) e alguns dos mais belos planos da obra do diretor, filmados em áreas meio deterioradas do Rio. Bressane é um esteta e se sua busca é pelo sentido possível da sexualidade, vê-se que ela passa pela beleza visual. Mas não apenas. Há um sabor do texto que a tudo percorre. O que é normal quando se sabe que esse é um cinema banhado pela filosofia, pela literatura e pela psicanálise. De modo que nele se copula tanto com o corpo quanto com o verbo, como sabiam os libertinos de todos os tempos mas sobretudo os da Ilustração. A liberdade dos sentidos passa pela liberdade da palavra, como pensava Sade, que continuava a desejar e exercitava esse desejo, mesmo no fundo de sua cela na Bastilha. De outro lado, há a pulsão investigativa de Bressane, que entra nos temas sem conhecê-los, ou melhor, para aprender alguma coisa sobre eles. Em certo momento uma das personagens diz: "É preciso matar a coisa para conhecê-la. O espírito é um vampiro." Aí está. O cinema de Bressane é sempre um pássaro batendo as asas nas grades da gaiola. Sempre à beira do abismo, lutando com seu meio de expressão, nunca aderindo a ele. Por isso é sempre desconstrutivo. No começo, vê-se o próprio diretor filmando, uma claquete é batida e então se anuncia: vai começar um filme, isso que vocês vão ver é cinema, não a vida real. Em atitude exasperada, pouco tranqüila com sua arte, "rugosa", para usar um adjetivo que ele próprio gosta, o cinema de Bressane está sempre ameaçando de destruição o próprio cinema... de Bressane. Um pouco como a imagem do escorpião que usa seu ferrão para matar-se - imagem favorita de Cortázar no O Jogo da Amarelinha, esse texto autocorrosivo sobre o romance. Da mesma forma, os filmes de Bressane são corrosões internas ao cinema. Enfim, o que parte da platéia talvez tenha levado consigo são as cenas de sexo explícito que aparecem (um fellatio mostrado na sombra de uma parede, o uso heterodoxo de uma banana, uma depilação íntima, etc.). Mas o que poderia (e deveria) ficar mesmo são os maravilhosos planos finais, quando os personagens se reapresentam e Filme de Amor toma ar documental, ao som do Hino ao Amor na voz de Wilma Bentivegna. Esse desfecho empresta novo significado a tudo que veio antes e gratifica o espectador que teve a paciência de esperá-lo.

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