Brasil é principal estrangeiro em Sundance

Como a Inglaterra, cinco longas brasileiros participam de mostras paralelas, perdendo em representatividade só para os Estados Unidos, organizadores do festival

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Por Agencia Estado
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Ainda que sua faceta industrializada pareça estar chegando ao auge, é um erro comparar o Festival de Cinema de Sundance ao outro grande evento cinematográfico americano, o Oscar. Primeiro, porque o Oscar não é um festival, mas somente uma cerimônia de premiação da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas dos EUA. Sundance é de fato um festival, no qual são exibidos filmes dos mais diversos tipos e das mais diversas partes do mundo, por dez dias, na estação de inverno de Park City, em Utah. Depois, o longa brasileiro Eu, Tu, Eles ainda luta por uma nomeação no Oscar como Melhor Filme Estrangeiro - conquista que se não se bastasse remota, ainda é bem mais crível que a eventual estatueta para o País. Em Sundance, o filme de Andrucha Waddington já está escalado, e não está sozinho: outros quatro longas brasileiros serão exibidos por lá. Isso não aconteceria se não fosse um festival minimamente alternativo. Somente os Estados Unidos, os donos da festa, têm mais filmes em exibição que o Brasil, que divide a primeira posição de estrangeiro com mais filmes com a Inglaterra, em Sundance. Logo depois vem a França e o Canadá, com quatro filmes cada. E ainda que não seja mais tão alternativo, Sundance ainda é um berço de experimentalismo na América do Norte. Tem revelado desde os irônicos estereótipos criados pelos irmãos Coen (Gosto de Sangue, de 1984) às agruras factóides de Eduardo Sánchez e Daniel Myrick (A Bruxa de Blair, de 1999). Dá espaço às insanidades intelectuais de mestres do underground (como David Lynch com A Estrada Perdida, 1997), e revela novas gerações de genealogia respeitável (como Sophia Coppola, e seu As Virgens Suicidas, de 2000). Não será diferente na edição de 2001, que começa nesta quinta, e apresenta para mais de 20 mil pessoas 106 longas-metragens até o dia 28 de janeiro. Apesar de abrir com a exibição de Invisible Circus, de Adam Brooks, com Cameron Diaz no elenco de um filme com nada de mais, também há o pacote de bons filmes e diretores promissores. Green Dragon, por exemplo, traz novamente para Sundance o diretor Timothy Linh Bui, autor do roteiro ao lado do irmão, Tony Bui. Quando os vietnamitas debutaram em 1999, com As Três Estações, já haviam emocionado júri e crítica com a história de um americano, veterano de guerra (Harvey Keitel), que volta à Ásia para procurar a garota que havia criado, anos atrás. O novo filme traz Patrick Swayze e Forest Whitaker, numa história que se passa em 1975, quando começavam a chegar aos Estados Unidos os primeiros refugiados da Guerra do Vietnã. Memento, de Christopher Nolan, é um longa que promete conquistar pelo roteiro, construído por cima das frágeis reflexões do protagonista, vivido por Guy Pearce: um homem que ao mesmo tempo que busca formas de vingar o assassinato brutal da esposa, sofre de um terrível problema de memória, que o faz esquecer de tudo que aconteceu nos últimos 15 minutos. Além de Pearce (de Priscilla - a Rainha do Deserto), o elenco tem Carrie-Anne Moss, a morena fatal de Matrix. Também na categoria dramática está concorrendo The Sleepy Time Gal, longa com Jaqueline Bisset, dirigido por Christopher Münch, que já é membro de carteirinha de Park City. Bisset interpreta uma DJ que tem sucesso no trabalho e no amor, mas que se acha vazia espiritualmente, e vive se afundando em dolorosos julgamentos. Esse mote simples serve para Münch como uma complexa composição humana, a ser decifrada pelo espectador por meio da personagem. A desconstrução de tipos humanos também é a fonte principal de trabalho de Richard Linklatter, que exibe Tape no módulo American Spectrum (não competitivo). O filme se passa numa choupana abandonada e isolada em Lansing, Michigan. É o terreno perfeito para analisar a personalidade de três pessoas (Ethan Hawke, Robert Sean Leonard e Uma Thurman), que se reencontram dez anos depois do colégio, quando eram amigos, para resolver um problema pendente. Usando o vídeo digital e a fórmula do "unreliable narrator" - firmada na literatura por mestres como Ezra Pound e Ford Madox Ford - Münch vai revelando sinuosamente as motivações verdadeiras e pessoais de cada um que se escondiam atrás de boa educação e nostalgia forçada. No módulo Première, fora de competição, espera-se ansiosamente pela exibição do épico Enigma, filme de Michael Apted (de 007 - O Mundo Não é o Bastante), que tem como pano de fundo Londres durante a 2.ª Guerra. Conta os esforços dos decifradores dos códigos de comunicações dos aliados em 1943, em barrar um ataque nazista a mercadores ingleses que atravessam o Atlântico. A produção é assinada por Mick Jagger e o elenco é encabeçado por Kate Winslet e Jeremy Northam. The Caveman´s Valentine também é destaque dessa mostra. O filme, dirigido por Kasi Lemmons, tem Samuel L. Jackson no papel principal, que personifica (dizem que extraordinariamente) um mendigo louco de Manhattan, que vive entre devaneios proféticos, escondendo um passado de músico brilhante e pai de família. Documentários - Apesar de não estar tão presente a crítica social que foi marcante em outras edições do Sundance, os documentários revelam, nesse ano, uma face mais "alternativa" de fato, com formas ou temas insólitos e inesperados. Um longa que deve merecer bastante atenção (e deve fazer brilhar os olhos da crítica) é Chain Camera, de Kirby Dick. Usando a mesma fórmula das velhas correntes de cartas, o diretor passou a dez estudantes do segundo grau de uma escola de Los Angeles dez câmeras digitais, e recomendou que gravassem seu cotidiano da maneira que quisessem e aquilo que quisessem, dando a certeza de que não seriam censurados. Depois, deveriam passar as câmeras a outros dez estudantes e assim por diante. O material foi editado, resultando num riquíssimo amálgama antropológico, no qual se fala abertamente de drogas, racismo, violência, sexo, amizade, família, etc. Aproveitando tempos de Rock in Rio, também é exibido We Sould Our Souls for Rock´n´Roll, de Penelope Spheeris, documentário que acompanha diversos concertos do mais bem sucedido festival de rock norte-americano, o Ozzfest. Ozzy Osbourne, ex-Black Sabbath e ídolo maior dos metaleiros do mundo inteiro, inspira o nome do festival além de ser um dos principais focos do filme, que acaba por enquadrar o roqueiro mais como pai de família e marido que é, atrás dos palcos, do que como o deus do metal reverenciado pelo mundo. O Ozzfest ainda cede imagens e depoimentos diversos sobre o evento e sobre a (sub)cultura heavy metal. The Natural History of the Chicken é daqueles filmes estranhos. É exclusivamente dedicado ao mundo das galinhas. Melhor: ao mundo dos apreciadores das galinhas - enquanto vivas. O panorama de personagens que ilustram o bem-humorado filme de Mark Lewis é vasto, desde uma senhora que enche sua galinha adoecida de analgésicos de gente, passando por treinadores de galos de briga, até uma mulher que cria as galinhas dentro da própria casa, e lhes dá calças para vestir. A ironia de Lewis tem ponto certo: ele busca revelar a ligação apaixonada que algumas pessoas podem ter com esse animal normalmente tão desprezado. Brasil Mais estranhamento que um documentário sobre galinhas pode ser o documentário sobre um diretor sul-americano de filmes B de terror que não corta as unhas há 25 anos. Pois é, André Barcinski e Ivan Finotti vão levar ao Sundance seu longa Maldito - o Estranho Mundo de Zé do Caixão, a cinebiografia do diretor brasileiro. Zé do Caixão em dose dupla, já que pela primeira vez deve ser exibido em Sundance e nos EUA, um filme do diretor: A Meia-Noite Levarei Sua Alma, de 1964. País, aliás, que está se anunciando como a nova mãe do Coffin Joe - como Zé do Caixão é conhecido por lá. Nas notas para imprensa americana o Sundance divulga que o diretor "cult" foi "banido" do Brasil, afirmação que é tão verdadeira quanto exagerada. Verdade é o fato de que o documentário de Barcinski e Finotti mostra partes dos longas de Mojica que foram cortadas pela censura - o que também acende os olhos dos americanos. Além de Eu, Tu, Eles também vai a Sundance Amores Possíveis, novo longa de Sandra Werneck (de Pequeno Dicionário Amoroso) com roteiro de Paulo Halm, ainda inédito por aqui. Capitaneado por Murilo Benício, é uma composição de três suposições diferentes sobre o destino de um mesmo personagem. O ponto em comum desses três "ses" é o amor secreto do personagem de Benício, representado por Carolina Ferraz. Princesa, filme que fez sucesso aqui durante a 24.ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, também estica as pernas até Park City. O longa do brasileiro radicado na Inglaterra Henrique Goldman, conforme sua definição, teria história semelhante a Uma Linda Mulher, mas nesse caso Julia Roberts teria um pênis. Conta os esforços de um travesti brasileiro em ir para a Itália, fazer uma operação de sexo, casar e ser feliz. Apesar de todas as coisas tomarem o caminho que Fernanda esperava (interpretada por um travesti mesmo, a convincente Ingrid de Souza), os embates psicológicos que a personagem constrói se tornam cada vez mais intensos e, no fim das contas, frágeis. Ousado para os padrões do festival, mas um ótimo filme. Resto do mundo - Vale a pena destacar os filmes do resto do mundo que tentam uma vaga na indicação de Melhor Filme Estrangeiro do 73.º Oscar e passarão antes por Sundance. A República Checa envia Divided We Fall, de Jan Hrebejk. Um filme de época, que retrata um casal da Ex-Tchecoslováquia, Josef e Marie Cí ek, apático aos acontecimentos da 2.ª Guerra, até que um vizinho judeu - que estava refugiado - volta para casa. Uma vez que o vizinho sempre nutriu uma aparente atração por Marie, o casal inicia desenfreadas discussões sobre a delação do mesmo. De Marrocos é exibido Ali Zaoua, de Nabyl Ayouch, filme que acompanha a trajetória de três menores abandonados, que tentam realizar um enterro decente de um amigo. O Canadá apresenta Maelström, de Denis Villeneuve, um filme surreal e impactante, narrado por um peixe. Villeneuve é caracterizado por abusar, no bom sentido, de deslocamentos temporais e quebras da linha narrativa em suas obras, e associa essas técnicas à história de uma mulher executiva que entra em crise após causar a morte de um pescador num acidente de carro. Também há expectativa quanto ao colombiano Our Lady of Assassins, de Barbet Schroeder, um filme tortuoso, violento e verdadeiro, baseado na autobiografia do escritor Fernando Vallejo (também autor do roteiro). Our Lady conta o retorno de um escritor colombiano a Medelín, depois de ter vivido 15 anos nos Estados Unidos. Mas a cidade de onde saiu já não é a mesma: dominada por tráfico de drogas, prostituição e assaltos. Ele não se importa, no entanto, já que sabe que está doente e vai morrer. Inevitavelmente, o escritor se apaixona por Alexis, um jovem e violento traficante. Na direção de sua história, a linguagem de Schroeder é comparada à de Almodóvar, já que consegue tratar de temas tão delicados, como homossexualismo e drogas, sem nenhum julgamento moral e sem estereotipar.

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