"Botín de Guerra" reconstrói passado argentino

O documentário do argentino David Blaustein relata como as "avós da Praça de Maio" saíram em busca de seus netos nascidos nos cárceres da ditadura, que haviam sido adotados e nada sabiam sobre seu passado

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Por Agencia Estado
Atualização:

Continua em cartaz o excelente documentário Botín de Guerra, do argentino David Blaustein. Não é seu primeiro filme a chegar ao Brasil. Apaixonado pela história do seu país, Blaustein já havia, em Caçadores de Utopias, retratado um dos mais permanentes e paradoxais fenômenos do país vizinho - o peronismo. Agora volta com tema pungente, retratando o movimento das "avós da Praça de Maio". Ainda durante a ditadura militar (1976-1983), essas mulheres resolveram procurar por netos que em parte dos casos nunca haviam conhecido. Muitas dessas crianças nasceram no cárcere, filhas de militantes presas, que eram conservadas vivas até o parto e depois executadas. Os bebês eram "doados" a famílias, geralmente de militares, que não podiam ter filhos. Blaustein fala, portanto, de um processo extremamente cruel, difícil de ser encarado e enfrentado. Muito se discutiu sobre suas implicações na época que essas crianças começaram a ser procuradas. Afinal, elas nada sabiam do próprio passado nem do de suas mães e pais. Haviam vivido normalmente até então e, mesmo as que sabiam que não eram filhas biológicas de suas famílias, nada conheciam das condições em que haviam sido "adotadas". Que efeito teria sobre elas o conhecimento do passado? Os debates, que tiveram ramificação até mesmo no Brasil entre os argentinos exilados, concluíram que era um dever moral contar aos filhos nascidos naquelas condições a realidade da sua história. Era nada menos que um compromisso com a verdade. O documentário é, em primeiro lugar, uma lição de dignidade e coragem pessoal. Aquelas mulheres, já idosas, ou pelo menos bem maduras, colocavam um lenço na cabeça e enfrentavam a ditadura em constantes passeatas na Praça de Maio. Não davam descanso aos donos do poder. Arriscavam-se fisicamente e dedicaram suas vidas a essa causa. Mas há outro aspecto a ser visto. É impressionante como existe, de maneira sedimentada entre elas - e por extensão no povo argentino - esse compromisso com a memória, com as raízes e com a história. Só uma força histórica muito grande pôde sustentar uma luta desse porte, tão longa e desigual. As avós enfrentaram o frio e a chuva, as ameaças físicas primeiro, e depois a chacota, porque precisavam religar um elo que fora destruído. Já haviam perdido os filhos na luta contra o regime; precisavam recuperar os netos, fechar a ferida. Fazer o luto, como diz uma delas, mãe de um filho "desaparecido" e avó de um neto que nunca havia visto. Realizar o luto para seguir adiante. Há histórias comoventes em cada passagem desse filme. Nunca, no entanto, o diretor apela para o sentimentalismo barato. Deixa que a emoção flua, porque é o substrato mesmo onde a busca das avós se enraíza. E ouve não apenas as avós, mas aquelas crianças que tiveram suas histórias pessoais seqüestradas e que agora são jovens conscientes do seu passado. Trauma - O encontro delas com as avós nunca é fácil. Primeiro porque as buscas são difíceis e muitas vezes exigem comprovação genética. Segundo, porque é sempre traumático saber que se viveu, até aquele momento, uma história falsa e que é preciso assumir a verdade, mesmo à custa de sofrimento. Alguns desses depoimentos são particularmente tocantes. Algumas crianças chegaram a viver algum tempo com seus pais biológicos, mas não se lembravam da primeira infância. A avó conta a uma jovem que seu pai se chamava Cláudio, mas ela o chamava de "Calio". A palavra repercute em algum canto da memória da jovem e ela a repete várias vezes e finalmente com voz infantil. Nesse momento, alguma coisa de uma história cortada pela brutalidade se refaz. Botín de Guerra fala dessa recuperação da memória e por isso se articula com o documentário anterior de Blaustein. Também em Caçadores de Utopias trata-se da política argentina e de seus efeitos sobre as pessoas. Também nele a Praça de Maio é o cenário principal, pois é onde acontecem as manifestações tanto de apoio quanto de desapreço aos regimes - é o fórum de Buenos Aires, o lugar onde a sociedade respira, pulsa e faz ouvir a sua voz. Há diferenças, no entanto. Caçadores de Utopias é basicamente o balanço de uma derrota. Afinal, os militantes do peronismo de esquerda foram vencidos e muitos deles morreram. Mesmo com a redemocratização, não se reconheceram no governo Menem, que também reivindica o peronismo, essa ideologia tão ambígua que pode acolher forças antagônicas, quando não contraditórias. Já Botín de Guerra, por muito triste que seja, é o relato de uma vitória, pelo menos de uma vitória parcial. Nada recupera aquelas vidas perdidas nem a infância roubada daquelas crianças. A perseverança das avós conseguiu, em muitos casos, reatar o fio de uma continuidade censurada. Mas há outra lição, essa de ordem mais geral: essa tenacidade, essa devoção à verdade, que vai muito além do mero apego familiar, mostra como são sólidos os fundamentos históricos da nação argentina. Um dia a crise financeira passa e o país se reconstrói. Quem tiver dúvida que assista a esse filme. Botín de Guerra (Botín de Guerra)- Documentário. Direção de David Blaustein. Arg-Esp/99. Duração: 118 minutos. 14 anos.

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