"Bodas de Sangue" é relançado no Brasil

Com cópias novas, o filme de 1981, é o primeiro e o melhor da trilogia composta por Carmen e Amor Bruxo e que recoloca o flamenco dos ciganos de Andaluzia no mapa mundial

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Por Agencia Estado
Atualização:

"El señor Saura não está em casa. Está em vacaciones (férias), mas ficará muito contente de saber que Bodas de Sangue está sendo relançado em cópias novas no Brasil". A informação é dada pela voz prestimosa que atende o telefone em Madri. O sucesso da trilogia dançada de Saura ajudou a resgatar o flamenco e a recolocar a arte dos ciganos da Andaluzia no mapa mundial. A trilogia, você sabe, é formada por Bodas de Sangue, Carmen e Amor Bruxo. O primeiro é o melhor dos três. Em 1981, Bodas de Sangue apontava para um novo caminho na obra diretor. Nos 20 anos decorridos desde então Saura banalizou um pouco, pela repetição, esses jogos estéticos baseados na dança e na luz. Mas até em Tangos e Goya, que não é especificamente dançado, mas resulta da experiência desses filmes, há momentos deslumbrantes. Saura surgiu no cinema espanhol ainda nos anos 50. A consagração veio nos 60, quando ele começou a destacar-se por suas obras fortamente críticas sobre a sociedade espanhola. Para enfrentar a censura do franquismo, Saura recorreu às alegorias e aos símbolos. Perfecionou-os a tal ponto que Cria Cuervos, esse filme sufocante e profundamente espanhol, foi recorrido em todo o mundo como uma obra-prima, nos anos 70. A redemocratização da Espanha, após a morte do generalíssimo Franco, não apenas privou o autor do seu principal objeto de denúncia como expôs a dificuldade para ajustar sua estética política à realidade dos novos tempos. A morbidez de Saura ajusta-se mal ou simplesmente não se ajusta à nova ordem. Logo surgiram as provocações de Pedro Almodóvar e Saura, cada vez mais, deixou de ser o grande do cinema espanhol. A descoberta do flamenco como expressão da alma espanhola concedeu-lhe uma sobrevida. Bodas de Sangue trouxe para os tablados a poesia vibrante e mítica de Federico García Lorca. A coreografia de Antonio Gades continuou impressionante em Carmen, mas aí havia um choque entre a artificialidade da trama adaptada de Merimée e Bizet e as cenas magníficas de dança. Amor Bruxo reiventa o concerto que Manuel De Falla criou como balé, com a duração aproximada de 25 minutos, e Gades ampliou para hora e meia de dança para Cristina Hoyos e ele. Na seqüência, entre uma ficção e outra, filmes de um verismo superficial na sua urgência, como Dispara!, vieram Sevillanas, Flamenco e Tango. Neste último, Saura substituiu o flamenco pelo ritmo portenho. Foi indicado para o Oscar de melhor filme estrangeiro. Lorca, se fosse vivo, teria amado Bodas de Sangue, escreveu, aqui mesmo no Estado, um especialista, o professor Julio G. García Morejón, quando o filme finalmente estreou no Brasil, em maio de 1982. Bodas de Sangue é uma tragédia elementar e profunda. Prescinde de efeitos retóricos para levar ao limite o jogo de sexo, paixão e morte na paisagem descarnada do palco. Lorca chegou a ser comparado a Ésquilo. Saura, como bom espanhol (e artista sensível), reconheceu a poderosa carga de dramaticidade do texto. Escolheu expressá-la por meio da dança. Encontrou em Gades o parceiro perfeito. Mais que o parceiro, o veículo. Não é de hoje que os críticos gostam de dizer que o cinema começa e se dilata na epiderme dos atores. Saura, em Bodas de Sangue, transforma o corpo de Gades no meio (suporte?) para dizer que o cinema deve procurar a essência dos gestos, buscando neles o sentido universal. Não será isso a própria dança? O filme trabalha, por meio de uma mise-en-scène muito elaborada, a evolução dos corpos no espaço. Há uma coreografia dos corpos, mas há também uma da câmera, dirigida por Teo Escamilla, o fotógrafo preferido de Saura, antes de unir-se ao italiano (e bertolucciano) Vittorio Storaro. Olhos foram feitos para olhar, mãos para tocar-se, pés não só para dançar mas para afirmar, no tablado, a enérgica presença do homem. Gades gosta de dizer que dança como um gesto político, pela liberdade. Saura e ele (e Escamilla) usam como cenários da ação aqueles que emanam dos próprios dançarinos. Recriam um recinto interior, que se completa no jogo de espelhos que confronta o dançarino com a exatidão do seu gesto. É um filme maravilhoso. Vislumbra, na magia do flamenco, o essencial da poesia de Lorca, com essas facas que criam, como autênticos símbolos de catástrofe, a tragédia. Bodas de Sangue (Bodas de Sangre). Drama. Direção de Carlos Saura. Esp/81. Duração: 72 minutos. 12 anos

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