Björk, uma estranha no sonho americano

Reticente, mas também luminosa nos números musicais, ela exibe grande desempenho

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Por Agencia Estado
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Maquiávelico Lars von Trier. Logo no início de Dançando no Escuro, Selma ensaia a peça Noviça Rebelde, uma simples montagem doméstica. Sua fragilidade, inocência, insegurança e também a felicidade quase infantil de se preparar para o papel, não podiam estar mais distantes da imagem que acompanha a cantora e compositora islandesa. A apresentação da personagem tem precisão cirúrgica, a empatia com o espectador é imediata. Em poucos minutos, Björk superstar deixa de existir e com ela os modelos extravagantes, o controle sobre platéias do mundo inteiro em megashows, uma carreira internacional vitoriosa. Por longos 139 minutos estará em cena apenas Selma, uma imigrante checa tentando juntar notas de US$ 1 em caixa de papelão para pagar uma operação e salvar o filho da cegueira. O corpo miúdo estará sempre coberto por vestidinhos singelos, os gestos serão indecisos, a voz baixa, os pequenos e inquietos olhos azuis estarão a maior parte do tempo sob lentes fundos de garrafa. Assim é Selma, um patinho feio vulnerável e sincero, que talvez tivesse a chance de virar cisne em um dos muitos musicais que cultua como compensação para sua penosa realidade na América, que lhe ceifará não apenas as fantasias, mas a própria vida. De vez em quando, é verdade, Selma solta a voz e o corpo, transforma tetos de trem, pátio de fábrica, tribunal e cela em imensos palcos para o exercício de coreografias libertárias. Mesmo assim, continua Selma, um bichinho acuado com direito a alguns minutos de escapismo em sua existência cinzenta. Não faz parte do dogma de Lars von Trier dar vida fácil às suas personagens femininas. Selma, como Emily Watson (Bess), em Ondas do Destino, ou Karen (Bodil Jorgensen) em Os Idiotas, são mulheres ligadas sobretudo pelo sofrimento. Selma está bem próxima de Bess e como ela cumpre a via-crúcis sofrimento/renúncia/redenção em nome de um ideal maior. Ambas demonstram que a aparência frágil reveste uma vontade férrea e inquebrantável, mesmo que acabem levando a pior na ingênua queda-de-braço que insistem em travar com o destino. Ainda em comum, a evidente submissão das atrizes às manhas de Lars von Trier, que exibe um evidente prazer em levar a representação à beira da vertigem. Se Emily Watson como Bess atinge uma transcendência negada a Selma, não se pode responsabilizar a cantora/compositora islandesa em sua estréia no cinema: Ondas do Destino é muito superior a Dançando no Escuro. Como uma estranha no ninho a quem o sonho americano não legará mais do que a referência a musicais, Björk vive seu calvário com grande dignidade. Hesitante, reticente, tímida, mas também luminosa nos números musicais, Björk oferece um grande desempenho. Não é sua culpa que a cena do assassinato seja tenebrosa, ou que a segunda metade do filme descambe para um pastiche desagradável do que o melodrama oferece de mais previsível na lógica do quanto pior melhor. Conta a mitologia erguida em torno de Lars von Trier que ele primeiro teria encomendado a Björk a trilha sonora e só depois aberto o jogo: ou ela vinha junto para a tela ou nada feito. A cantora, obviamente, cedeu à chantagem e as tensas relações entre os dois já fazem parte do folclore de filmagem. Na tela, porém, a pop star islandesa, tida como extremamente tímida fora dos palcos, brilha em interpretação comovente. Embora Dançando no Escuro abuse de uma manipulação do espectador que chega às raias da irritação, o filme tem justamente na intensa entrega de Björk seu maior trunfo.

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