Bellocchio ataca o comércio na religião

Diretor italiano disseca os jogos de interesse por trás de um processo de santificação em O Sorriso de Minha Mãe, que concorre em Cannes

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Por Agencia Estado
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Numa cena famosa de El Nome del Padre, de 1971, um garoto se masturba numa igreja observado pela estátua da Virgem Maria, que se metamorfoseia em mulher que fuma um cigarro. Não é de hoje que o italiano Marco Bellocchio tem os punhos cerrados contra a Igreja Católica. A surpresa é constatar que o diretor, cujos últimos filmes vinham sendo decepcionantes, retomou o vigor e a provocação do começo de sua carreira. O próprio Bellocchio reconhece que seu novo filme representa mais, para ele, do que os anteriores - os mais recentes, pelo menos. Chama-se L´Ora di Religione, embora também tenha o título alternativo de O Sorriso de Minha Mãe. Sérgio Castelito interpreta o artista, um pintor, que um dia descobre que está em andamento o processo para a santificação de sua mãe. "Não consigo falar desse filme em termos de cinema. Roteiro, direção, interpretação, música, tudo me parece tão supérfluo. O que importa foi o impacto que me causou essa situação inicial: a surpresa do homem que descobre que a Igreja quer transformar sua mãe em santa." O diretor diz isso ao repórter e ao jornalista alemão que o interceptaram no estande do Festival de Veneza, no Mercado do Filme. Acrescenta que a idéia de L´Ora di Religione começou a surgiu num curso de cinema que, há cinco anos, vem dando regularmente em Bobbio. Um ano, os estudantes fizeram um curta-metragem sobre um rapaz que fala de sua mãe como se fosse uma santa. Marco Bellocchio começou a desenvolver a idéia de uma mãe que age como uma santa, mas é destituída de afetividade, daí a idéia do enigmático sorriso que Castelito tenta arrancar do rosto da mãe, em suas lembranças. Renovar o culto - Bellocchio acrescenta que é um fato que a Igreja, volta e meia, precisa de figuras santificáveis para renovar o culto. Cita o livro de Giordano Bruno Guerri sobre Santa Maria Goretti, que explica que ela foi santificada, a toda pressa, porque a Igreja, após a liberação de costumes que se seguiu à 2.ª Grande Guerra, precisava incentivar um retorno à castidade. Há todo um jogo de interesses no processo. De parte da Igreja é ganhar fiéis numa época em que sofre o assédio das outras religiosas. De parte da família de Castelito, no filme, é a vantagem material que poderá conseguir: prestígio, dinheiro. "É um ataque ao vão comércio que domina a religião", concorda Bellocchio, mas ele não deixa de projetar-se no protagonista, um artista que se declara ateu, mas sofre uma estranha perturbação ao descobrir a trama urdida para reconvertê-lo. "Não se vive impunemente a experiência da cristianização", diz o cineasta. Na Itália, o filme provocou polêmica, mas o Vaticano ainda não levou o assunto ao ponto de ameaçar Bellocchio com a excomunhão. Ele diz que não liga, mas fornece uma chave ao explicar o título, L´Ora di Religione. O diretor tem uma filha. Não inscreveu a garota na aula de religião, na escola, porque achou que seria bobagem, sendo ele e a mulher laicos. A própria garota inscreveu-se para seguir os colegas, que freqüentavam todos aquela aula. Estava se sentindo diferente. Questionamentos- "Há todo um apelo à conformidade, de forma a que as pessoas se sintam seguras vivendo em grupo, sem questionar nada; de minha parte, quero questionar sempre." L´Ora di Religione nasce desse questionamento. O filme ataca a Igreja para falar de religião. E ataca a família: para que a mãe seja declarada santa, o irmão louco de Castelito tem de confessar que a matou, para configurar o martírio. As cenas entre os irmãos - dois querendo arrancar a confissão do louco, Castelito tentando preservá-lo - lembram que, desde De Punhos Cerrados, em 1965, a sombra do grande Luchino Visconti projeta-se sobre o melhor cinema de Bellocchio.

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