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Beckett & Keaton

Antológico encontro do dramaturgo com o comediante, 'Film' sai agora em DVD

Por Antonio Gonçalves Filho - O Estado de S. Paulo
Atualização:

Única experiência essencialmente cinematográfica do dramaturgo irlandês Samuel Beckett (1906-1989), Film, que estreou em 1965, em Nova York, marca o encontro histórico entre o criador de Esperando Godot e seu inspirador, o comediante Buster Keaton (1895-1966). Cultuado, o filme é lançado em DVD pelo selo Magnus Opus em sua versão integral de 22 minutos, trazendo nos extras as cenas cortadas na edição final pelo diretor Alan Schneider, que trabalhou com Beckett seguindo cada passo seu em Film. Originalmente, a obra seria chamada de The Eye (O Olho), tanto por se tratar de uma investigação filosófica sobre o olhar e ser visto por uma entidade metafísica como pela admiração que Beckett tinha pelo cinema russo, em especial o do cineasta Dziga Vertov, criador do conceito cine-olho, em que compara o olhar da câmera - objetivo, preciso - com o humano.

 

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O lado filosófico desse olhar se impõe pela doutrina imaterialista do filósofo irlandês George Berkeley (1685 -1753). Seu princípio "esse est percipi" (ser é ser percebido) sintetiza essa filosofia, que defende ser o tato, e não a visão, o sentido que nos leva à apreensão perceptiva dos objetos. Em termos religiosos (Berkeley era ministro anglicano), os objetos só existiriam na condição de algo a ser percebido - no caso, por um ser capaz de apreendê-los pelo espírito (Deus). Apenas a percepção divina manteria os seres vivos em estado de existência. Beckett, por não confiar na transcendência garantida por Berkeley, promove uma revisão em sua filosofia, assim como se apropriou anteriormente do tema de uma comédia estrelada pelo próprio Keaton.

 

Mais de uma vez sugeriram que a inspiração de Esperando Godot (escrita em 1949 e publicada em 1952) vem de uma comédia dirigida em 1949 pelo austríaco Richard Oswald (1880-1963), The Loveable Cheat, em que Keaton interpreta um tipo burlesco à espera de seu parceiro, homem de negócios falido. Este sai em viagem enquanto o amigo fica prestando contas aos credores. Inspirado ou não em Keaton, o fato é que ele chegou a ser sondado para ser um dos atores da primeira montagem americana de Esperando Godot, mas recusou o convite. E, provavelmente, recusaria também o de Film se não precisasse tanto de dinheiro. O esforço beckettiano em neutralizar significados em Film foi em vão, a julgar pela opinião de Keaton sobre a obra - que nunca entendeu. O diretor Alan Schneider disse que o encontro entre Keaton e Beckett foi um "desastre silencioso".

 

"Quando Sam (Beckett) e eu chegamos à casa de Keaton, ele estava bebendo cerveja e assistindo a um jogo de beisebol pela televisão e nem se dignou a nos oferecer um copo", lembrou Schneider, acrescentando que todas as perguntas de Beckett - e as suas - eram respondidas com monossílabos e silêncios prolongados. "Eles simplesmente não tinham nada a dizer um ao outro, nenhum mundo semelhante a compartilhar." Bem, pelo menos fora da tela. Nela, a figura de Keaton enche o espaço de significados.

 

Film é um curta-metragem encomendado pelo Evergreen Theatre em 1963, um projeto de 90 minutos que deveria reunir três autores, Beckett, Harold Pinter e Ionesco em torno de suas obsessões. Beckett escolheu o olho, Pinter, uma caixa e Ionesco, um ovo. Só o projeto de Beckett vingou. O filme, mudo, que faz lembrar em alguns momentos as comédias de Keaton dos anos 1920, só tem um som, "sssh!", feito pelo casal que o ator cruza junto ao muro de uma cinzenta rua de um bairro operário. Ele faz o personagem O, que tenta escapar inutilmente da percepção de E, a câmera-olho que o segue por toda a parte. Protegido pelo ângulo de imunidade de 45 graus, ele entra em seu apartamento onde já se encontram um cãozinho e um gato deitados lado a lado - eles também percebendo a presença de O. Tentando se esconder do "olho" da câmera com um pedaço de pano (Keaton é visto contra a parede, sempre de costas), ele expulsa os bichos para fora. No entanto, estes voltam num surrealista vaivém que o obriga, no final, a tomar consciência de si.

 

Não se trata simplesmente de uma câmera objetiva e de outra subjetiva, mas de duas visões diferentes da realidade, uma do olho que percebe e outra do olho de quem é percebido - algo que o próprio Keaton já havia explorado em tom de comédia no clássico O Homem das Novidades (The Cameraman, 1928). Nesse filme, um macaquinho filma - de forma aleatória, claro - uma sequência que salvará a vida de seu dono. A câmera vira o autor real do filme, um olho autônomo que percebe naturalmente, onisciente e onipresente. Keaton nunca fez menção ao filme ao falar de Beckett, mas tampouco se esforçou para esconder seu desconforto com Film - que ele não considerava engraçado, sugerindo algumas gags para Beckett e Schneider (rejeitadas por ambos). Beckett e Keaton tinham como proposta se comunicar por meio do silêncio. Mas a natureza do silêncio beckettiano é bem diferente da realidade cômica dos filmes mudos do último.

 

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Se há um certo lirismo nas imagens de Film ele se deve justamente à fotografia do russo Boris Kauffman, irmão de Dziga Vertov e responsável pelas imagens do clássico L’Atalante e de Sindicato de Ladrões. A sequência em que Keaton cobre o espelho para não ver seu reflexo - e deixar a câmera perceber sua presença - é uma gag metafórica filmada com absoluto rigor de cálculo. No epílogo, o espectador é recompensado pelo close-up do comediante. Ele conseguiu fugir da percepção dos outros, mas o olho da câmera é implacável.

 

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"Às vezes Beckett adorava o filme e às vezes o odiava, lembrando todas as coisas que não fiz ou fiz mal, criticando defeitos técnicos ou rindo e chorando ao mesmo tempo ao ver Keaton derrubar o maldito chihuahua do colo"

ALAN SCHNEIDER, diretor de Film

 

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Ponto cego. Na cena inaugural de Film, o ator Buster Keaton tenta escapar do 'olho' da câmera correndo pela rua e encostando seu corpo nas paredes, protegido por um chapéu e um lenço que cobre o seu rosto, revelado para o espectador apenas no close-up final.

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