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Bastidores do filme "Psicopata Americano"

Foi um verdadeiro anticlímax: poucos filmes tiveram uma rodagem tão anunciada quanto a adaptação do best seller de Bret Easton Ellis, Psicopata Americano

Por Agencia Estado
Atualização:

Foi um verdadeiro anticlímax: poucos filmes tiveram uma rodagem tão anunciada quanto a adaptação do best seller de Bret Easton Ellis, Psicopata Americano. Você deve lembrar-se, pois o caso foi amplamente explorado na mídia. Leonardo DiCaprio havia concordado em fazer o papel do serial killer do livro, havia mesmo se declarado pretty excited, o que se pode definir como entusiasmado, com a idéia. O entusiasmo durou pouco. Depois do estouro de Titanic, não ficava bem o novo príncipe das adolescentes americanas fazer um assassino de prostitutas e DiCaprio deixou a diretora Mary Harron na mão, preferindo ir fazer A Praia, com direção de Danny Boyle. Mary convocou então às pressas Christian Bale, que foi o garoto de Império do Sol, de Steven Spielberg. Ele topou a parada, o filme foi feito, não foi nenhuma sensação nos cinemas e agora já está nas locadoras, em vídeo da Europa. Ninguém é louco de considerar o livro de Easton Ellis um exemplo de grande literatura. É mediano e olhe lá, mas não é destituído de valor como olhar sobre um espécime cultuado nos anos 80 - o yuppie, que também foi retratado por Tom Wolfe em A Fogueira das Vaidades, outro livro cult que não deu muito certo no cinema, embora realizado por Brian De Palma, a quem não se pode negar personalidade (e, às vezes, qualidade). Mary Harron já havia feito I Shot Andy Warhol, lançando um olhar glacial sobre a promiscuidade artística de Nova York nos anos 60 e 70. Com Psicopata, Mary quis avançar no tempo, enquadrando os 80 e outro tipo de promiscuidade. Patrick Bateman é aquilo que, no Brasil, se chamou de mauricinho. Narcisista até a raiz dos cabelos, cuida obsessivamente do cabelo, da pele, das roupas. Cuida tanto do corpo que faz mil abdominais por dia, capacitando-se como atleta sexual. O problema é o vazio que consome esse personagem representativo de uma geração, de uma certa concepção de mundo baseada em valores econômicos que se manifestam sob a forma de um verdadeiro culto das aparências. Competitivo e niilista, egocêntrico e superficial, Bateman é um cara tão separado dos outros, como de si mesmo, que só encontra satisfação matando. É a sua forma de afirmar uma identidade neste infame mundo novo que parece ter sido soterrado com as eras Thatcher e Reagan, mesmo que o que tenha vindo depois, neste novo mundo agora globalizado, não seja nenhuma retomada do bom e velho humanismo. Chega a ser terrível ver essa crítica da futilidade do universo masculino feita por uma mulher obviamente enfurecida. Pode-se criticar Mary Harron pelo que não deixa de ser seu cinema de tese, como o livro de Easton Ellis também é uma obra de tese. O que ele na literatura e ela no cinema querem é fazer de Bateman o retrato acabado do homem oco da época atual. Ele ouve Genesis, Whitney Houston, desperta polêmica pela elegância de seus cartões de visita e esse vazio existencial, que o escritor e a diretora identificam com o fim das utopias salvacionistas, é tão grande que ao anti-herói não resta senão afiar os punhais para matar prostitutas e esfaquear moradores de rua, desta maneira marcando sua presença no mundo. Não é bom ver Psicopata Americano, no sentido do agradável, mas não se pode negar que Mary Harron, de alguma forma, conseguiu colocar na tela um pouco, ou uma face, do malaise contemporâneo. Esse mal-estar não é acompanhado pela trágica consciência de si mesmo que poderia fazer de Bateman o Raskolnikov da virada do século ou de Psicopata Americano o Crime e Castigo da atualidade. A consciência do crime e o desejo de expiação resultariam num filme mais dilacerado. Mary Harron, com o perdão da comparação, tem algo de kubrickiano na sua glacial exposição do fim do mundo. A confissão final não provoca empatia nem catarse. É gélida, como todo o filme, bem-acabado, às vezes visualmente brilhante, mas frio e oco como o mundo que quer criticar. Só que, por menos bom que seja o Psicopata, encerra em si mesmo um desafio, um ato de coragem de Mary Harron e Christian Bale. É mais do que se pode dizer de A Praia, que também não consolidou a imagem de galã de Leonardo DiCaprio, contribuindo para transformá-lo num fenômeno efêmero, porque passageiro, passado. O mais curioso de tudo é que, se às vezes Mary Harron quer que Bateman se pareça com o Norman Bates que Anthony Perkins imortalizou em Psicose, para o espectador brasileiro a identificação é outra. De perfil, ele é igualizinho ao celerado que formou uma quadrilha para roubar a nação, quando era presidente. O horror, o horror.

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