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Balanço de Cannes é polêmico, mas positivo

Festival decepcionou quem achava que o júri presidido por David Lynch fosse optar pelo bizarro ou pelas novas tecnologias, mas o saldo de filmes é bom

Por Agencia Estado
Atualização:

Na cena mais impressionante de O Pianista, um velho judeu, o pai do pianista Wladislaw Sztilman, cruza com dois soldados alemães nas ruas de Varsóvia. Eles o chamam, perguntam por que não tirou o chapéu, em sinal de respeito, e quando o velho esboça um sorriso como pedido de desculpas, um deles lhe aplica um soco na cara que o derruba. O velho levanta-se, meio cambaleante, o nariz sangrando, e o mesmo soldado que o agrediu grita que ele não tem o direito de andar na calçada. Ela é proibida para os judeus, o velho que caminhe pelo meio da rua. É uma cena que cala fundo no espectador. O cinema tratou muitas vezes do tema do holocausto. O próprio Steven Spielberg, em A Lista de Schindler, mostrou imagens fortes dos campos de extermínio. O mérito do filme de Roman Polanski está em colocar na tela, senão pela primeira vez, pelo menos de forma muito eloqüente, o horror do nazismo no cotidiano dos judeus. O Pianista foi o vencedor da Palma de Ouro de 2002, no domingo. Não se pode dizer que o júri presidido por David Lynch fez a coisa errada, pois o filme de Roman Polanski possui méritos. Foi, de qualquer maneira, uma escolha polêmica e até decepcionante. A seleção do diretor de programação Thiérry Frémaux colocou na competição muitos filmes políticos, mas também filmes que apontam para as novas tecnologias que estão mudando a face do cinema. Lynch já havia dito, numa entrevista pouco antes de Cannes, que não gosta muito desse negócio de digital, que cinema, para ele, tem de ser feito com celulóide. A escolha do júri que ele presidiu aponta nessa direção. As novas tecnologias, que chegaram com pompa e circunstância a Cannes, podem ter merecido seminários e projeções especiais, mas saíram escorraçadas pela porta dos fundos, na hora das premiações. Não é preciso citar o filme de Alexander Sokurov Arca Russa, que não recebeu nada do júri nem na premiação dos críticos. Um dos integrantes do júri da Fédération Internationale de la Presse Cinématographique, a Fipresci, já havia revelado à reportagem que Arca Russa jamais entrou na consideração dos críticos, quando eles discutiam para ver a quem atribuir seu prêmio. E olhem que foi, de acordo com o próprio relator do prêmio, a mais longa deliberação da história da Fipresci, em meio século de premiação. Sokurov radicalizou, e com reacionarismo, acrescente-se, uma tendência - os filmes feitos com digital e narrados em longos planos-seqüência -, cujo melhor exemplo talvez tenha sido Kedma, do israelense Amos Gitai, também preterido na premiação final. Revanche - Quem esperava prêmios refletindo o gosto de David Lynch pelo bizarro também quebrou a cara. O diretor de Cidade dos Sonhos devia estar, no domingo, no seu dia de História Real. Repetiu o que outro diretor chegado aos temas bizarros, David Cronenberg, havia feito ao presidir o júri, em 1999. Naquele ano, o próprio Lynch concorria com seu filme sobre o velho que põe o pé na estrada e, a bordo de um cortador de grama, atravessa os EUA para encontrar o irmão moribundo. Cronenberg deixou-o fora das Palmas, preferindo premiar o humano e engajado Rosetta, dos irmãos Dardenne. Lynch agora retribuiu. Seu júri ignorou Spider, de Cronenberg, com seu mergulho na mente de um psicopata, e preferiu premiar um filme que confronta seu protagonista com os temas da grande História. Foram as novas tecnologias, portanto, as grandes derrotadas no Festival de Cannes, que terminou no domingo. E o prêmio talvez não tenha sido dado a Polanski por O Pianista, exclusivamente, mas pelo conjunto da obra. Quando esteve em São Paulo para a abertura do Festival da Cultura Polonesa, o produtor Lew Rywin, ao revelar que O Pianista havia sido selecionado para a competição em Cannes, acrescentou que acreditava nas chances do filme porque David (Lynch) admirava Roman (Polanski). Do Polanski de O Bebê de Rosemary e Chinatown, é até fácil gostar. Difícil é procurar as qualidades de Lua de Fel ou de Portal do Inferno, que são indignos de qualquer diretor classe A que se preze. O Pianista é um filme de dramaturgia tradicional, bem feito, mas muita gente aqui em Cannes o achou gélido, como se Polanski tivesse falhado ao tentar reconstituir, por meio da experiência de Szpilman no Gueto de Varsóvia, a sua experiência no Gueto de Cracóvia, quando era criança. Não é verdade. Há muitos momentos fortes e emocionantes em O Pianista, a começar pelo descrito na abertura desse texto, mas se trata de um Polanski clásssico, feito para não errar. Foi, caracteristicamente, um prêmio de carreira. Quando Virginie Ledoyan, que apresentava a cerimônia, perguntou ao presidente do júri quem tinha vencido a Palma de Ouro, Lynch, por sinal não disse O Pianista, mas "Roman Polanski". Justiça - Os demais prêmios foram mais palatáveis: dois para Aki Kaurismaki e seu ótimo O Homem sem Passado (melhor atriz, Kati Outinen, e grande prêmio do júri), prêmio do júri para Intervenção Divina, do palestino Elia Suleiman, que também ganhou o prêmio da crítica, melhor roteiro para Sweet Sixteen, de Ken Loach, melhor ator (Olivier Gourmet) para Le Fils (O Filho), de Jean-Pierre e Luc Dardenne. Embora justos, os prêmios para os dois últimos foram insatisfatórios para filmes que, no fundo, podiam ambicionar a Palma (e O Filho, na verdade, foi o melhor filme de todo o festival). O prêmio de direção, um tanto disparatado, foi dividido entre dois filmes completamente diferentes, como se o júri tivesse querido contemporizar. Assim, subiram ao pódio o norte-americano Paul Thomas Anderson (The Punch-Drunk Love) e o coreano Im Kwon-taek (Bêbado de Mulheres e de Pintura). Bons filmes, só que, embora Anderson mereça todo respeito por Boggie Nights - Prazer sem Limites e Magnólia, que eram mais ambiciosos, Kwon-taek poderia e até deveria ter recebido o prêmio sozinho. Se os irmãos Dardenne e Loach, que vieram do documentário, apresentaram as melhores ficções de Cannes 2002, houve um documentário, o primeiro a participar da competição em quase 50 anos, que também daria um belo vencedor da Palma de Ouro. Bowling for Columbine, de Michael Moore, mostra, como nenhum outro filme recente, a cultura da violência e do medo instalada nos EUA e explorada pelo governo de George Bush após o trágico 11 de setembro. Moore, que talvez seja hoje o maior crítico do presidente norte-americano, teve de contentar-se com um prêmio especial, criado para homenagear os 55 anos do festival. Enfim, pode-se discordar desse ou daquele prêmio do júri, mas o presidente Lynch não andou errado ao dizer que, se o mundo anda mal, o cinema, que é seu reflexo, está bem. A seleção de Cannes 2002 foi a prova, excetuados os filmes franceses. Obras como Demonlover, de Olivier Assayas, sobre sexo na Internet, Irréversible, melhor seria chamar de Irresponsável, de Gaspar Noe, sobre um estupro que desencadeia uma vingança selvagem, e O Adversário, de Nicole Garcia, sobre um homem que mata a família, expuseram os problemas sociais e afetivos do país. Deles, só o de Nicole pode ser considerado bom, mas a verdade é que, depois desses filmes, fica mais fácil entender o fenômeno Le Pen, que tanto intriga os analistas. A França, seu cinema deixa claro, está doente.

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