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‘Bacurau’, de Kleber Mendonça e Juliano Dornelles, reflete o País como um espelho

Filme tem elementos de ficção científica - a história passa-se daqui a alguns anos, revelando um Brasil distópico

Por Luiz Carlos Merten
Atualização:
Sonia Braga e Udo Kier como Domingas e Michael em cena de 'Bacurau' Foto: Victor Juca

Em 1968, um ano emblemático, o cineasta alemão Peter Fleischmann realizou um filme premonitório sobre o racismo na Europa - Cenas de Caça na Baixa Baviera. Quem conhece aquele clássico do novo cinema alemão dificilmente deixa de fazer a associação. Bacurau, ou as cenas de caça no Brasil. Embora a lista de inscritos para concorrer à indicação pelo Brasil a uma vaga no Oscar comportasse 12 títulos, houve desde logo uma polarização entre dois - Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, e A Vida Invisível de Eurídice Gusmão, de Karim Aïnouz, ambos premiados em Cannes, o primeiro com o prêmio especial do júri, e o segundo escolhido como melhor na mostra Un Certain Regard.

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Na terça, 27, a comissão formada pela Academia Brasileira de Cinema escolheu o longa de Aïnouz como o candidato do Brasil a uma vaga no prêmio de melhor filme internacional da Academia de Hollywood. Bacurau chega antes aos cinemas. Estreia nesta quinta, 29. Será o maior lançamento da história da distribuidora Vitrine, que também vai lançar A Vida Invisível, mas essa é outra história. Bacurau sai em 200 salas.

Qualquer que fosse o representante brasileiro - dos dois -, o País estaria bem representado. Não se repetiu a politicalha que impediu que Aquarius, também de Kleber, fosse indicado há três anos. Na semana passada, a equipe esteve na cidade para o que se chama de ‘junket’. Diretores e elenco deram entrevistas para promover o lançamento. Sônia Braga dedicou sua interpretação a Marielle Franco, a vereadora que foi assassinada no Rio, em 2018. Kleber revelou que há dez anos iniciou a gestação do filme. Depois de Aquarius, e com a cumplicidade de Juliano Dornelles - diretor de arte e amigo do peito, colaborador em quase tudo o que fez antes -, colocou o foco em Bacurau.

Cena do filme 'Bacurau', de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles Foto: Victor Jucá

Como um filme gestado ao longo de uma década pode ser o espelho do Brasil atual?

Karine Teles, atriz - e grande vencedora do Grande Prêmio do Cinema Brasileiro deste ano, por Benzinho - arrisca uma interpretação. Essa atualidade tão veemente - visceral - de Bacurau está no olhar de quem vê. A cidade que sumiu do mapa e está sob ataque de um bando de gringos, a população que pega em armas para defender seu território, as cenas de caça, tudo compõe o receituário de um western ideológico, mas dizer que é uma obra de revanche contra a perseguição a Aquarius? Kleber não lança gasolina no fogo. “Não vou dizer como as pessoas têm de ver o Bacurau. Desde que era crítico, sempre me recusei a entregar uma fórmula. Como crítico antes, como cineasta, hoje, meu papel sempre foi instigar.”

Mais até do que Kleber, Juliano Dornelles é apaixonado pelo cinema de gênero. Bacurau tem elementos de ficção científica - a história passa-se daqui a alguns anos, revelando um Brasil distópico. Tem até terror. Kleber e Juliano, Juliano e Kleber, J&K, reabrem a vertente do western ideológico de Glauber (Rocha), O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro. É curioso, mas Quentin Tarantino, em Era Uma Vez... em Hollywood, revisita o spaghetti western e Noite Mágica, de Paolo Virzì, também questiona a autoria dos faroestes macarrônicos, por meio daquelas discussões de roteiros, e roteiristas. Kleber reconhece em seu filme a sujeira do spaghetti western, mas diz que a limpou ao filmar com a lente Panavision. Embora antiamericano - os matadores numa teoria da conspiração, a serviço de políticos corruptos -, o filme está impregnado pelo espírito da Nova Hollywood, da qual os diretores são admiradores, e dos mais apaixonados.

Na trama de Bacurau, Teresa/Bárbara Colen, um assombro de beleza e talento, vem enterrar a avó e encontra a cidade sitiada. Logo vai começar o ataque. A igreja virou depósito, o museu e a escola viraram sedes de resistência. “A gente não acorda um dia e diz que o roteiro vai ter essas simbologias. A gente escreve e tudo vai se desenvolvendo com naturalidade”, diz Kleber. “Acho fantástico quando as pessoas veem o museu e a escola como esteios da comunidade. Os forasteiros que chegam se recusam a visitar o museu. Talvez devessem ter aceitado. Uma coisa que é muito clara para mim, para o Juliano, para a equipe toda, é que a cultura merece, mais que isso, exige respeito.”

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As (violentas) cenas de caça mostram os invasores - os gringos, liderados pelo alemão Udo Kier, que se considera mais americano que eles - usando tecnologia de ponta. Armamentos, drones (em formato de disco voador). Sônia Braga faz a médica, Domingas. O sertão não vira mar - vira sangue. “A violência está no centro de tudo, mas não é o objetivo. Bacurau é sobre o que ocorre quando há radicalização”, reflete Kleber.

Sônia Braga interpreta Domingas no filme 'Bacurau' Foto: Victor Jucá

‘Personagem é parte de uma trama coletiva’, diz Sônia Braga

Sônia Braga não quis saber de entrevista individual, só com a TV. Dedicou, de pé, alguns minutos ao repórter. Faz a médica, personagem que, quando não está bêbada, é um amor de pessoa (a definição está no diálogo do filme). Sônia segue gloriosa, icônica.

Mesmo ausente, você foi a rainha na noite de premiação do Cinema Brasileiro. Todas aquelas cenas, aquelas canções...

Vi pelo WhatsApp, todo mundo compartilhava comigo. As cenas de Dona Flor, A Dama do Lotação, Eu Te Amo. Todas aquelas canções que me acompanhavam na tela. Não adianta ter inveja. Fico pensando só se virão novas canções.

Como surgiu a sua médica?

Preciso antes entender a personagem, de onde ela brota. Domingas só tomou forma quando criei uma voz para ela. Foi muito mais simples de fazer porque a vejo dentro de uma história que é coletiva. Quero dizer também que dediquei essa personagem a Marielle (Franco) e que também quero saber quem matou Marielle.

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Cena do filme 'Bacurau', com Sônia Braga Foto: Victor Jucá

Análise:  Resistir é preciso, numa ficção densa e apaixonante

Há algo muito forte, que explode em forma de violência, em Bacurau. Os diretores Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles reabrem a vertente do western ideológico, à Glauber Rocha. O sertão vira sangue, mas Bacurau não é um panfleto que usa códigos de gênero para eletrizar a plateia. É um filme de personagens, forte em colorido - e erotismo. O céu impressiona - borrascoso. Algumas daquelas cenas, acredite - os diretores confirmam -, são efeitos especiais para tornar o colorido mais dramático. E o erotismo - está presente desde sempre na obra de Kleber.

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Seu parceiro busca na Guerra do Vietnã, na resistência dos vietcongues ao imperialismo dos Estados Unidos, uma das matrizes de Bacurau. Kleber recua um pouco mais. Cita o Gueto de Varsóvia e os judeus que se sublevaram contra o nazismo, na luta pela sobrevivência. É o que faz a população de Bacurau. O filme já se abre sob o signo da morte - um acidente de estrada, caixões despejados pelo caminho. Bacurau fica no sertão, mas, ops!, de repente a cidade sumiu do mapa. E começa a caçada. A conspiração que une os gringos, liderados por Udo Kier, a um político local desencadeia implacável destruição. Mortes contam pontos. A população reage. Teresa, que acaba de chegar para enterrar a avó, Domingas, a médica sem papas na língua, Pacote, o gatilho do sertão, Lunga, o trânsfuga readmitido na comunidade. Unidos na luta pela sobrevivência. Para reintegrar Bacurau ao mapa.

Todos esses personagens são muito bem desenhados - e interpretados. Bárbara Colen, Sônia Braga, Thomás Aquino, Silvero Pereira. E os forasteiros - Karine Teles, naquela moto. Sua personagem, que vem do Sudeste, acha que é branca, mas é tratada pelos gringos com o mesmo desdém que dedicam aos demais habitantes de Bacurau. São todos ‘latinos’. São estranhas as coincidências da arte. O filme que começou a ser gestado há dez anos ganhou forma na era Temer, que provocou o protesto da equipe de Aquarius na escadaria de Cannes, e chega aos cinemas como um espelho a refletir o Brasil atual. 

Cenas de uma caçada brutal. Tudo muito direto, a agressão como a reação. Na ficção de Bacurau, o povo não aguenta mais tanto sofrimento, e reage. Pegas em armas. Contra a tecnologia de ponta dos agressores, as armas são peças de museu.

Bacurau, que dá título ao filme, é um pássaro noturno do sertão. Enxerga à noite. A metáfora não poderia ser mais clara. Como cinema, o filme convida o público a viajar nos códigos de gênero. A trilha vira uma personagem à parte. De Gal, embalando a ficção científica inicial, ao chamado ideológico de Geraldo Vandré. No final, um letreiro informa. Além de defender a identidade nacional, Bacurau gerou 800 empregos. Tudo, realmente, muito direto.

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