Babenco leva sua câmera para trás das grades

Diretor dá início amanhã ao laboratório com 150 candidatos a um papel em Estação Carandiru, que será rodado num pavilhão desocupado do presídio

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Por Agencia Estado
Atualização:

Muitos dos personagens de Estação Carandiru eram crianças quando Hector Babenco lançou, há 21 anos, Pixote, a Lei do Mais Fraco, o consagrado filme sobre os menores de rua do Brasil. Por isso, ao decidir adaptar para o cinema o livro do oncologista Drauzio Varella - escrito a partir de depoimentos de presos com quem o médico conviveu durante trabalho voluntário no presídio - o cineasta de pronto se lembrou de uma frase proferida por Millôr Fernandes por ocasião das filmagens de Pixote: "O que fazer com o menor abandonado? Deixá-lo crescer". Babenco inicia amanhã o laboratório com cerca de 150 candidatos que se inscreveram para interpretar durante quatro meses os habitantes do maior presídio da América Latina - as crianças carentes de ontem. Até o fim do ano o diretor deverá divulgar os nomes dos atores que participarão das filmagens a serem realizadas entre janeiro e abril de 2002 num pavilhão desocupado do Carandiru, especialmente cedido pelo governador Geraldo Alckmin. Estação Carandiru, o nono filme de Babenco, deverá chegar aos cinemas no início de 2003. Diferentemente do que fez durante a produção de Pixote, quando percorreu os subúrbios de São Paulo à procura de meninos para interpretar os personagens do filme, o cineasta optou desta vez por trabalhar com profissionais. "Profissionais sim, mas não chiques e famosos", apressa-se em dizer ele, bem humorado, no escritório de sua produtora, a HB Filmes, recém-instalado numa casa no Jardim Europa. "Não seria ético fazer um filme sobre o Carandiru com atores da Globo que ganham R$ 100 mil por mês. E, além do mais, rostos de celebridades comprometeriam a autenticidade do filme." Leia, a seguir, os melhores trechos da entrevista com Hector Babenco: Por que voltar a tematizar questões como a exclusão e o confinamento, abordadas há 21 anos em "Pixote"? Hector Babenco - A verdade? Não sei dizer por que quero fazer esse filme... Essa pergunta me persegue, eu a discuti com a minha analista, e não encontrando uma resposta racional me questionei: o que quero dizer com esse trabalho que já não tenha dito antes? Também não encontrei essa resposta. Vou ter respostas quando o filme estiver pronto. Revisitar esses territórios não era, nesse momento, um desejo. O que eu queria era fazer uma comédia. As pessoas dizem que sou engraçado, mas o momento de levar isso para o cinema ainda não chegou. Quem sabe depois de Estação Carandiru eu faça outras escolhas. Nesse momento trata-se de visitar esse território que o Drauzio me revelou. A decisão de fazer um filme sobre o presídio do Carandiru traz à sua memória a Febem de "Pixote" (o filme mostra a trajetória de um grupo de garotos que foge da instituição)? Pixote teve outra motivação, outro grau de naturalismo. Era mais um registro de individualidade, tratava de tirar dos meninos a etiqueta social "menor carente" que escondia um ser humano com nome, família e desejos. Fui motivado pela indignação de ver o problema do menor, essa coisa pungente, não ser levado a sério. No Carandiru vou falar das histórias que um médico ouviu. Se são verdades ou mentiras, não me interessa. O que me motiva é o fascínio que elas me despertam. Eu vi o Drauzio ser possuído pelo livro. Ele me alimentava quase que semanalmente com as histórias que ouvia. Naquele momento eu era um convalescente (Babenco foi paciente de Varella durante o tratamento de um câncer no sistema linfático, curado com um transplante de medula óssea) e um ouvinte privilegiado. O que mais o impressionou no livro? Me impressionei com a imparcialidade da descrição, com a ausência de adjetivação por parte do narrador e com a presença quase tácita do médico como ouvinte silencioso. E também com a capacidade que as pessoas têm, mesmo as que cometeram as atrocidades mais hediondas, de relacionar-se com o que fizeram sem expiar-se. É como se os presos, na necessidade de contar sua história, precisassem perdoar a si mesmos. O médico, no presídio, funciona um pouco como um padre confessor, mas de igreja nenhuma, o que torna sua atuação muito mais ampla e o faz muito mais necessário como personagem porque é quem provê a saúde; ele auxilia também no nível do corpo. A um médico não se mente nunca. Ser aceito por ele é muito importante para o preso e, por isso, o preso se mostra não como é e sim como gostaria de ser visto. Quais serão os limites entre ficção e realidade na versão cinematográfica de "Estação Carandiru"? Não há a mínima intenção de fazer do filme um docudrama ou de tentar estender os personagens, perpetuá-los. O próprio Drauzio me disse que tomou certas liberdades ao escrever o livro. Não necessariamente as histórias contadas por um personagem pertencem exclusivamente a ele. Se um homem que faz medicina lá no Carandiru há tantos anos agiu assim, por que eu não agiria? O roteiro já está finalizado, mas não quero falar dele. Não gosto de falar do que não está pronto. Mas brinco com o Drauzio que o filme será muito melhor do que o livro. O filme irá fazer uma crítica ao sistema judiciário? O filme não é sobre a violência e nem sobre problemas sociais. Estou longe do compromisso de fazer um trabalho ligado estritamente ao real e longe de qualquer modismo, da linguagem da revolta que tem se manifestado nas comunidades urbanas, por exemplo. Há espaço para todo tipo de trabalho. Fernando Ramos da Silva, o ator que interpretou "Pixote", caiu na marginalidade, a exemplo do personagem que interpretou, e foi morto pela polícia. Isso fez com que você se arrependesse de ter buscado os atores de "Pixote" nas ruas, entre crianças de camadas sociais mais baixas? Quatro dos cinco irmãos do Fernando morreram de maneira semelhante, um no Carandiru e os outros em conflito com a polícia. Ele vinha de uma estrutura familiar precária e nunca se conformou com a miséria. Eu me questionei muito se devia ou não fazer Pixote com esses meninos por temer que algo assim pudesse acontecer. Mas ao mesmo tempo pensei: que direito tenho eu de negar a essas crianças a possibilidade de conhecer um universo novo, de serem remuneradas e até de conseguir uma profissão? Um trabalho desses é uma escola. Sempre procurei desassociar o universo dos meninos do universo do filme. Não aceitei, por exemplo, a idéia de que por conveniências de produção as crianças dormissem numa casa alugada, ou num hotelzinho, sob a tutela de alguém. Quis que elas tivessem plena consciência de que aquilo tudo era um emprego. Com exceção do Fernando, nenhum outro menino teve problemas. Ninguém poderia prever o futuro.

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