"Assédio": a polifonia lírica de Bertolucci

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Por Agencia Estado
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Você já imaginou um filme romântico onde os protagonistas não são o casal principal, mas sim a música? É o caso de Assédio, novo filme do diretor italiano Bernardo Bertolucci, que estréia neste fim de semana. Mostrando que está realmente disposto a recuperar a ambientação italiana em seus filmes - processo que começou com Beleza Roubada em 1996 -, Bertolucci prova novamente que poesia pode se perpetuar em imagens maravilhosamente guiadas pela trilha musical. As canções de Assédio relacionam-se às culturas distantes das personagens principais: a estudante africana Shandurai (Thandie Newton, que também pode ser vista em MI:2) e o pianista inglês Mr. Kinsky (David Thewlis). Shandurai, depois de ter o marido preso pelo novo regime ditatorial que se instala no país africano onde vive, vai para a Itália estudar medicina. Para se manter, trabalha como faxineira na casa onde mora Mr. Kinsky, um inglês que dá aulas de piano em Roma, mas que nunca toca em público. Mas em pouco tempo Kinsky apaixona-se profundamente pela empregada. Primeiro, tenta conquistá-la com uma jóia. Com a recusa de Shandurai, confessa sua paixão e pergunta o que poderia fazer para ser correspondido, dizendo ser capaz de tudo para tal. Num acesso de raiva, Shandurai faz só um pedido: "tire meu marido da prisão". Constrangido por saber que é casada, Kinsky para de cercá-la abertamente (como sugere o título do filme original, Besieged), para cercá-la involuntariamente, esforçando-se para libertar o marido na África. Durante esse processo - no qual Kinsky vai se livrando de todas obras de arte da casa até terminar com seu próprio piano, no intuito de pagar as despesas judiciais para soltar o marido da estudante - Shandurai vai progressivamente sendo também atraída pelo professor de piano. Engana-se quem acha que entre Shandurai e Mr. Kinsky cresce somente um desejo sexual. Primeiro, Kinsky se apaixona pelo lado exótico de Shandurai, refletido principalmente na música que ela escuta em seu quarto, o pop africano de Papa Wemba e Salif Keita. Junto a esta conquista, cresce também a atração sexual e surge uma rendição moral do pianista à estudante. Pois Shandurai não é dissimulada: ela é direta e sincera quando não admite os rodeios do patrão, além de dizer abertamente não entender as composições de Beethoven e Scriabin que Kinsky exercita no piano. Mas é justamente a partir dessas distâncias que o inglês deixa-se levar, assumindo sua rendição à Shandurai. Por exemplo, compõe uma canção claramente influenciada pela musicalidade que a moça leva para sua casa. Os atores e sua dramaticidade acabam se tornando irrelevantes perto da atmosfera que Bertolucci constrói (conveniente, já que as atuações de Thandie e David Thewlis não são das melhores, ainda que tal lacuna passe despercebida diante do restante). O romance das personagens acaba se evidenciando através do namoro entre a musicalidade de cada um. Assim, as canções vão compondo o ambiente perfeito para que o romance tome forma também no plano material. Bertolucci finaliza sua poesia cênica e sonora fazendo com que tudo gire em torno de um balé fantástico conduzido pela câmera, que capta ângulos inesperados e faz movimentos singulares, tendo como cenário o velho casarão onde mora o pianista.

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