As tentações do futuro, segundo um ex-seminarista

José Araújo, diretor de Sertão das Memórias, segue para Roma para concluir as filmagens do longa-metragem As Tentações do Irmão Sebastião, que se passa entre 2020 e 2030, no pós-apocalipse

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Por Agencia Estado
Atualização:

José Araújo, o ex-seminarista que guarda na estante troféus do Sundance e do Fórum de Berlim por seu filme de estréia - Sertão das Memórias -, encerra, esta semana, em Fortaleza, a etapa brasileira das filmagens de As Tentações do Irmão Sebastião, seu segundo longa-metragem. Como deseja "evocar o tempo das catacumbas", o diretor cearense realizará, em ruínas romanas, a seqüência final do filme. Ele segue para a capital italiana nos próximos dias, na companhia de apenas dois profissionais (o fotógrafo Antônio Luiz Mendes e o ator principal, Rodolfo Vaz). Num dia de filmagem, espera resolver tudo. "A seqüência final" - avisa - "está bem de acordo com nosso reduzido orçamento" (US$ 450 mil). O protagonista de As Tentações do Irmão Sebastião, um noviço em crise vocacional, é representado por um ator desconhecido do grande público. Só quem acompanha o trabalho do Grupo Galpão, de Minas Gerais, conhece Rodolfo Vaz. O diretor sabia que, com orçamento de menos de US$ 500 mil, não teria recursos para contratar astro disputado por novelas e elencos teatrais. Nem conseguiria dele a entrega total exigida pelo personagem. Além do mais, trabalhar com atores desconhecidos nunca foi motivo de preocupação para José Araújo. Afinal, em seu primeiro longa, ele escalara os pais, Antero e Maria, dois sertanejos de Miraíma, interior do Ceará, como protagonistas. Antônio Luiz Mendes, responsável pela anestesiante fotografia de Sertão das Memórias, sugeriu ao cineasta que analisasse o nome de Rodolfo Vaz. Depois de ler o roteiro, Mendes entendera que o ator do Galpão - visto num pequeno papel (de um padre) em Outras Estórias, de Pedro Bial - seria um ótimo intérprete para o noviço em crise vocacional. "Meu Sebastião" - explica o diretor - "deveria ser pequeno, magro e ter uns 32 ou 33 anos; Rodolfo Vaz é pequeno, magro (pesa 49 kg), tem 39 anos, mas aparenta menos: era, então, o ator que eu procurava." Catacumbas - A religiosidade, uma das matrizes de Sertão das Memórias, ganha ainda mais destaque em As Tentações do Irmão Sebastião. No novo filme, Araújo soma duas forças que marcaram profundamente seus 50 anos de vida: o catolicismo e a umbanda. Ele, que foi seminarista, descobriu, depois, os cultos afro-brasileiros e nunca deixou de freqüentá-los. Seu interesse pelos terreiros é tão grande que realizou - antes de Sertão das Memórias - o documentário de média-metragem Salve a Umbanda. O Sebastião das Tentações será visto em dois momentos: na pré-adolescência, quando será interpretado pelo menino Dalzir, de 11 anos (30% do filme), e na maturidade, representado por Rodolfo Vaz (os 70% restantes). A narrativa se passa numa grande cidade, em futuro próximo. Sebastião, noviço da Ordem dos Irmãos de São Sebastião (congregação místico-messiânica que sincretiza o Cristianismo do passado com o do futuro), prepara-se para a ordenação, perseguido por intensas dúvidas. Antes de abraçar o sacerdócio, ele precisa encontrar respostas para seqüelas do maior trauma de sua vida. Quando criança, foi violentado por Exu Morcego, entidade da umbanda que ainda o persegue pelos corredores e sombras do convento. Os traumas do noviço são narrados em confissão ao Padre Sanctus (Marcos Miranda), religioso que encanta multidões. Sebastião vê o martírio da vida religiosa como a única maneira de alcançar a redenção. Ele vive numa região devastada e carente de vocações. José Araújo admite que a cidade do futuro que sedia o filme tem algo de Fortaleza (o quinto maior município do País, com 2.138.234 habitantes), mas que seu segundo longa-metragem não busca precisão geográfica nem temporal. "Estamos no futuro, em 2020 ou 2030, numa grande cidade pós-apocalipse, a destruição está por toda parte, os problemas sociais são graves", pontua. "O diretor de arte, Sérgio Silveira, trabalhou a iconografia do sertão e da periferia das grandes cidade nordestinas, criou espaço social que corresponderia à Canudos de Antônio Conselheiro, se ela tivesse chegado ao ano 2.030." O convento onde Sebastião cumpre seu noviciado tem paredes de taipa e está cercado por ambiente onde o lixo se soma a outros sinais de degradação. As locações do convento foram realizadas em edificação em ruínas, no município de Messejana. "A trilha sonora" - que poderá ser feita por Naná Vasconcelos, o mesmo de Sertão das Memórias - "trabalhará ruídos duros como sons de armas de fogo". O mundo que cerca o convento é povoado por multidões faveladas. Alguns deserdados habitam buracos semelhantes às catacumbas romanas. "Esta realidade" - lembra José Araújo -- "explica a profunda ligação de Sebastião com o cristianismo do tempo do Império Romano e da Idade Média". Por isto, "ele faz questão absoluta de ir a Roma, onde será visto - já ordenado e ´incorporado´ - no túmulo do mártir São Sebastião, testemunha de sua fé". Umbanda - José Araújo garante que o filme não passará imagem negativa da umbanda. "Muito pelo contrário", avisa. "O fato de Sebastião ter sido violentado na adolescência por um Exu das trevas (o Exu Morcego) não significa que a umbanda terá sua imagem depreciada no filme; o Exu é uma entidade muito forte na religiosidade popular: no meio do terreiro, ele é o chefe do caboclos." No filme, o Exu Morcego estará incorporado no personagem Debo (Auri Porto, protagonista da peça Entre Ferragens, de Fernando Bonassi, e integrante do elenco de O Boca de Ouro, do Grupo Oficina). Araújo lembra que "a umbanda referenciará um universo verde, paradisíaco, uma espécie de paraíso perdido nos trópicos". "A violação de Sebastião se deu na adolescência" - reforça - "e ele foi violentado por outro adolescente, um rapaz que era medium e que, naquele momento, incorporava o Exu Morcego; meu contato com a umbanda já dura 20 anos, conheço e freqüento seus rituais com o melhor e maior dos interesses." Para confirmar sua visão positiva da umbanda, o cineasta revela que o Exu que persegue Sebastião é, na realidade, um das personalidades do próprio Sebastião, um ser atormentado, em busca de libertação. E arremata: "O filme servirá como prato cheio para análise de psicólogos junguianos."

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