"As Horas" já chega como um dos melhores filmes do ano

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Por Agencia Estado
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Desde que Ingmar Bergman usou a morte em Gritos e Sussurros, seu clássico do começo dos anos 1970, para destacar a importância da vida, nem que seja por um só momento, não se via nada igual. The Hours, de Stephen Daldry, que no Brasil estréia no dia 28 e vai se chamar As Horas, reacende a chama de Bergman. Com Far from Heaven, de Todd Haynes, forma o díptico dos melhores filmes do ano, pelo menos em termos de Hollywood. Será um escândalo se ambos não forem indicados terça-feira, para o prêmio da Academia, na categoria principal. Como Julianne Moore está nos dois filmes e é sempre magnífica, em qualquer dos dois, isso pode automaticamente transformá-la na favorita para o Oscar de melhor atriz. Por melhor que Julianne seja, e é, Nicole Kidman também participa da disputa. Faz uma Virginia Woolf intensa e brilhante. E por que esquecer-se de Meryl Streep, que também está em As Horas? Começa em 1941, com o suicídio de Virginia Woolf. Ela escreve uma carta para o querido Leonard, diz que foram mais felizes juntos do que duas pessoas poderiam ambicionar, enche os bolsos de pedra e entra naquele rio para morrer. A partir daí, desenrolam-se três histórias, em diferentes épocas. A de Virginia/Nicole começa em 1923 e termina em 1941. A de Julianne Moore passa-se nos anos 1950 ? a mesma época de Far from Heaven ? e a de Meryl Streep em 2001. O filme trata de criatividade, suicídio, aids, relações familiares, morte. Na sua cena mais impressionante, Nicole explica para Leonard seu conceito de humanidade e diz que não se pode viver experiências intensas de uma maneira isolada, evitando a vida. É por isso, como autora, que ela explica porque é preciso haver uma morte em seu romance Mrs. Dalloway. Para afirmar, pelo contraste, a importância da vida. É o que também diz Ed Harris, no papel do aidético amigo de Meryl. A vida vale nem que seja por um momento, mas ele acrescenta a Bergman o conceito de Cioran que também inspirou Gosto de Cereja, de Abbas Kiarostami. Sem a possibilidade do suicídio, a vida seria intolerável. As Horas tem muitas chances não apenas de ser indicado para o Oscar, mas também de levar a estatueta de melhor filme do ano. A Academia não vai premiar O Senhor dos Anéis ? As Duas Torres, talvez nem mesmo indique o belíssimo filme de Peter Jackson. Afinal, ele não tem começo nem fim, é o episódio intermediário da trilogia adaptada de JRR Tolkien. É mais difícil apostar em Stephen Daldry para melhor diretor e não porque o trabalho do realizador de Billy Elliott não seja, aqui, admirável. Martin Scorsese talvez leve o Oscar de direção, mas aí não será merecido, por Gangues de Nova York. Será muito mais um prêmio de carreira, como Hollywood gosta de fazer. São só especulações, por enquanto. Elas passam, necessariamente, por As Horas. Nicole Kidman admitiu que, se fosse a diretora de casting do filme, não se teria escolhido para o papel de Virginia Woolf. Agradeceu a Daldry por tê-lo feito. ?Li Virginia Woolf obrigada, na escola, e confesso que a achei aborrecida. Só agora consigo apreciar seu valor e, por isso mesmo, acho que foi uma honra ter sido escolhida por Stephen (Daldry) para fazer essa personagem?. Mrs. Dalloway, o clássico fundador do romance moderno de Virginia, é a chave para se penetrar no universo de As Horas. A personagem do livro afeta as vidas das três mulheres de As Horas. O próprio livro de Michael Cunningham era considerado ?inadaptável? por seus monólogos, que seriam impossíveis de expressar na tela. ?David Hare fez um trabalho excepcional?, diz o diretor. E fez mesmo, mas o verdadeiro artista de As Horas é Stephen Daldry, que dá um salto espetacular como diretor e vira um verdadeiro autor, ajudando a iluminar o simpático, não muito mais que isso, Billy Elliott. Por falar em dificuldade de adaptação, é o tema de Adaptation, o novo filme de Spike Jonze que, depois de viajar pela mente de John Malkovich, trabalha agora sobre uma idéia próxima. Nicolas Cage interpreta gêmeos, o próprio roteirista Charlie Kaufman e seu irmão, que também escreve para cinema, Donald. Charlie é contratado para adaptar um livro da jornalista Susan Orlean. Ele mergulha num terreno movediço e sente que não poderá concluir a missão, porque o livro não tem propriamente uma história para contar. Enquanto isso, seu irmão, seguindo suas lições, escreve um roteiro que é considerado genial. Isso agrava a crise de Charlie, que tenta viajar na mente de Susan Orlean e termina envolvido numa trama de sexo e drogas, violência e assassinato. Ficção e vida, é o mesmo tema de As Horas, mas tratado de forma muito menos densa, à base de truques pós-modernos de narração que funcionam, pois o filme já ganhou um monte de prêmios nos EUA e também é considerado forte candidato às indicações para o Oscar. Para concluir, pode-se fazer uma curiosa comparação entre dois filmes e diretores diversos, cujos caminhos se cruzam aqui na Berlinale. The Life of David Gale, de Alan Parker, participa da competição. Nenhum filme desse diretor pode ser bom de verdade, mas David Gale é razoável, o que, vindo da parte dele, já é considerável. É um thriller moral sobre a pena de morte. O italiano Gabriele Salvatores também fez uma espécie de thriller moral em que o tema da morte se superpõe ao da família ? Io non Ho Paura, baseado no romance de Nicolo Ominiti ?, mas a comparação não é entre os dois. É entre Parker e o diretor brasileiro Cláudio Assis, que veio mostrar no Fórum o premiado (em Brasília) Amarelo Manga, sobre a vida ? amor, sexo, relacionamentos ?, na periferia do Recife. Parker enche a boca para dizer que já fez muita coisa sórdida na vida, mas pelo menos nunca foi jornalista. O discurso de Assis não é exatamente igual, mas é parecido. Fala mal da imprensa ? dos críticos, dos jornalistas, como se fossem inimigos ?, diz que faz filmes para o público. Ok, vamos esperar que o público diga, no Brasil, se Amarelo Manga é bom. De minha parte pretendo pagar o ingresso para poder dizer que o filme tem coisas interessantes, mas não é tão bom como certos entusiasmos ? de críticos e jornalistas que o diretor desdenha (ou os amigos podem?) ? permitiriam supor.

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