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Após cinco décadas, o passado bate à porta em 'A Espiã Vermelha'

Em filme, Judi Dench é acusada de ser agente da KGB

Por Mariane Morisawa
Atualização:

Que ninguém pergunte qual o James Bond preferido de Judi Dench, que interpretou M, a chefe do MI6, o serviço secreto de inteligência inglês, em produções estreladas por Timothy Dalton, Pierce Brosnan e Daniel Craig. “Esta é uma pergunta impossível!”, disse a atriz ao Estado no Festival de Zurique. 

A Espiã Vermelha Foto: CALIFORNIA FILMES

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Mais fácil é fazê-la responder por que quis fazer o papel de Joan Stanley, em A Espiã Vermelha, baseado numa personagem real, Melita Norwood, uma secretária inglesa que passou segredos nucleares para a União Soviética durante 50 anos por motivos aparentemente ideológicos. “Fiquei fascinada pela história dessa mulher extraordinariamente comum”, afirmou a inglesa de 84 anos.  Mas o grande atrativo para viver Joan foi ser dirigida por Trevor Nunn, seu amigo desde os tempos da companhia teatral Royal Shakespeare Company, que ela integrou a partir dos anos 1960. “Fizemos muitas produções no teatro juntos, muitos Shakespeares”, contou a atriz durante o Festival de Zurique.

Os dois trabalham juntos, porém, pela primeira vez no cinema. A obra de William Shakespeare é e sempre foi sua grande paixão. “Mal pude acreditar na minha sorte quando meu primeiro trabalho profissional foi uma peça dele”, contou Dench, que estreou nos palcos como a Ofélia de Hamlet, com a companhia The Old Vic, em 1957. 

“E pouco depois estava em Stratford-upon-Avon (a cidade natal do dramaturgo)”, lembrou ela, que fez Isabella de Medida por Medida. No cinema, esteve em adaptações de textos de Shakespeare como Sonho de uma Noite de Verão (1968) e Henrique V (1989), além de Shakespeare Apaixonado (1998), como a rainha Elizabeth I, que lhe rendeu seu único Oscar, de melhor atriz coadjuvante, por uma presença na tela de cerca de 8 minutos. 

“Só tenho memórias boas. Me lembro que precisava de três pessoas para entrar no meu vestido, fora a maquiagem e o cabelo. Fui muito paciente e boazinha”, disse, rindo. “Na hora do almoço, tinham de vir perguntar o que eu queria comer e me ajudar a comer. Eu só ficava lá sentada. Me tornei a própria rainha Elizabeth!” A réplica do Globe Theatre construída para o longa-metragem hoje está no quintal da casa de Dench.

Mesmo com mais de 60 anos de profissão nas costas, ela disse que ainda fica nervosa e com medo, principalmente antes de pisar o palco. “O medo gera energia”, afirmou. 

É um tipo diferente de medo que ela sente hoje com os rumos do mundo. “Não lembro de me sentir tão nervosa, nem na época da crise dos mísseis cubana”, disse, referindo-se ao quase conflito nuclear entre os EUA e a antiga União Soviética quando os soviéticos instalaram mísseis em Cuba em 1962. “Fico deprimida ao ver o noticiário com essa loucura do Brexit.” 

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Ela teme a interrupção da troca cultural entre países europeus e o Reino Unido depois de sua saída da Europa. Enquanto acompanha as notícias com apreensão, continua, porém, trabalhando. Após A Espiã Vermelha, em cartaz no Brasil, ainda aparece em Artemis Fowl e na adaptação cinematográfica do musical Cats. “Cada trabalho é um salto no escuro, mas é isso que é bonito nessa profissão.”

Crítica: É intrigante como reflexão sobre questões pendentesLuiz Carlos Merten

Trevor Nunn escolhe começar seu filme pelo final, com a prisão da chamada ‘vovó vermelha’. A história, real, mobilizou a mídia inglesa. A velhinha simpática, na verdade, teria sido uma perigosa espiã que repassou aos comunistas importantes segredos de Estado da Inglaterra, durante a 2.ª Grande Guerra, quando os ingleses concorriam com os norte-americanos e os nazistas para ver quem construiria primeiro a bomba atômica. Se os nazistas tivessem conseguido, teriam mudado o curso da guerra e, talvez, da história, a grande, com H (maiúsculo).

É quase impossível que o espectador consiga desgrudar o olho da tela, e por dois motivos. O primeiro é que a história, em si, é muito boa e mantém o espectador ligado em seus desdobramentos. A outra é, obviamente, a presença de Judi Dench como a cientista Joan Stanley. É uma atriz excepcional. Interpreta a personagem idosa, e o bom é que a intérprete do papel quando jovem, Sophie Cookson, não apenas é talentosa como torna a transição perfeitamente crível. É curioso, se o espectador que vir A Espiã Vermelha fizer a ponte com outro drama recente. Duas Rainhas, sobre a rivalidade entre as rainhas Elizabeth I e Mary Stuart, mostrou como duas mulheres conseguiram se afirmar num universo de homens e terminaram encarnando o poder na Grã-Bretanha. Elizabeth, que sobreviveu à rival, a quem mandou matar, teve um reinado longevo, nisso se compara a outra monarca inglesa, a rainha Vitória. A segunda Elizabeth, que agora reina, eterniza-se no trono. É interessante porque a experiência de Joan, na vida cotidiana, mostra que a luta das mulheres esbarra sempre no preconceito.

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Por mais brilhante que seja a mente da jovem, é tratada pelos cientistas, nos centros de pesquisa, como auxiliar do professor genial. Trevor Nunn é um grande do teatro. Escolhe o formato do flash-back e uma narrativa, digamos, convencional, centrando-se no dilema de consciência da jovem Joan e nos problemas familiares da idade madura, quando o próprio filho a considera traidora. Outro diretor poderia centrar o foco nas questões políticas, no antes como no agora. A influência comunista nas universidades inglesas evoca todo um período do pensamento. Russos e ingleses podiam estar unidos contra os nazistas, mas a guerra, com certeza, iria acabar e uma nova geopolítica – a Guerra Fria – se ergueria dos seus escombros. 

Joan passa informações porque é pacifista e acredita que, se só os EUA ou a Inglaterra possuírem o segredo da bomba, o mundo viverá em desequilíbrio. Os próprios comunistas dividem-se. Essa objeção de consciência, a luta pela humanidade, coloca em perspectiva a questão do patriotismo. Como cinema – Trevor Nunn claramente não é do ramo –, é fraco. Como interpretação, é 10. Como reflexão sobre questões que ainda não estão resolvidas, é intrigante.

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