Análise: O ponto de partida da obra de Ingmar Bergman é o fracasso das relações

Diretor permaneceu fiel a sua melancolia nórdica, tratando a infelicidade como condição humana

PUBLICIDADE

Por Cacá Diegues
Atualização:

As duas primeiras décadas da segunda metade do século 20 foram particularmente agitadas na formação do cinema moderno. Ao contrário dos anos anteriores, uma era de afirmação de um espetáculo popular, entretenimento à altura do estado do mundo, esses cerca de 20 anos foram de profunda transformação na construção dos filmes, uma vontade às vezes delirante de mudar o cinema.

PUBLICIDADE

Foram décadas revolucionárias para a estrutura dos filmes, o valor e o sentido deles. Tratava-se de fazer do cinema uma arte realmente nova, à altura do que eram as outras manifestações artísticas depois da virada do século, das invenções da literatura, da pintura ou da música. Os cineastas, sobretudo europeus, assumiram que eram artistas e pensadores, que tinham a obrigação de filmar as dores do mundo, numa linguagem e numa sintaxe que servisse ao que cada filme pretendia.

+ No centenário de Ingmar Bergman, obra do diretor sueco é relembrada com mostras e exibições de filme

Dois cineastas, tão diferentes um do outro, se destacaram como referência desse momento de transformação. O italiano Federico Fellini e o sueco Ingmar Bergman partiam da mesma constatação do fracasso das relações humanas. Mas enquanto o primeiro, com sua visão latina e cristã da humanidade, falava de uma redenção possível e necessária, o segundo permanecia fiel a sua melancolia nórdica, tratando a infelicidade como condição humana.

Foto de Ingmar Bergman no dia 1.º de janeiro de 1960, na Suécia Foto: AFP PHOTO / SCANPIX SWEDEN / Bonniers HYLEN

A imagem mais poderosa que me ocorre do pensamento bergmaniano sobre a humanidade e a vida, encontra-se em Gritos e Sussurros, de 1972. No final desse filme, uma jovem mulher que sofre de um câncer terminal e de dores lancinantes, por alguns poucos segundos vê suas irmãs se divertirem no pátio da casa, o que a ilumina e a deixa feliz. Nesse pequeno momento de trégua de seu sofrimento físico, ela diz que estava se dando conta de que havia vivido toda a sua vida para viver aqueles poucos segundos de felicidade. E isso lhe bastava.

Do mesmo Ingmar Bergman, Morangos Silvestres, de 1957, é uma síntese precoce desse pensamento, uma antologia de situações que o exprimem perfeitamente. Um dos primeiros road movie modernos, nele o professor Isak Borg, magistralmente interpretado por Victor Sjöström, decide ir de carro de Estocolmo, onde mora, a Lund, onde vai receber um título honorário pelo seu jubileu. Mal-humorado, pouco receptivo à aproximação de outras pessoas, desinteressado dos problemas delas, Borg, aos 78 anos, vive sozinho aos cuidados de uma empregada igualmente idosa, que se ocupa de tudo que se refere a ele.

Em seu quarto, a trabalhar sobre uma escrivaninha bem arrumada, organizada segundo sua meticulosa obsessão pela ordem, ouvimos em off a primeira frase das memórias que Borg começa a escrever: “Nossa relação com as outras pessoas consiste em discutir com elas e criticá-las”. Naquela noite, antes de ganhar a estrada, ele sonha que está numa cidade desconhecida, onde só há ruínas. Numa calçada, cai a seus pés um caixão fúnebre que se abre e o deixa ver o corpo morto em seu interior - ele mesmo, o próprio Isak Borg.

Publicidade

A pedido dela, Isak leva em sua viagem para Lund, a nora Marianne que se separou de seu filho por causa da gravidez que ele não deseja. Eles dão carona a três jovens, uma moça e seus dois pretendentes, que vão passar o verão na Itália. Os agora cinco viajantes salvam um casal em crise que, mesmo acidentado, não cessa de brigar, se ofendendo mutuamente. No caminho, Isak ainda visita sua velha mãe fria e distante, uma senhora agressiva que não tem nenhuma lembrança feliz do passado. Ao longo da estrada, Marianne às vezes toma a condução do velho automóvel de Isak, o que permite ao professor dormir um pouco.

De cochilo em cochilo, Borg vai sonhando com seu passado de criança, com as férias de verão na casa de campo de uma família desunida, com a bela prima que o esnobou para casar com seu irmão, com a esposa Karin que o traiu sem que ele se importasse com a traição. Todos personagens representados pelos extraordinários atores de Bergman, como Bibi Anderson, Ingrid Thulin, Max Von Sydow, além de Victor Sjöström, treinados no teatro do cineasta para uma outra forma de representação no cinema, com quase nenhum gestual, mais concentrada, congelada.

Durante a viagem, o professor Borg sonha prestar exame para a profissão de médico, como se fosse um jovem estudante. Ele aprende então que o primeiro dever de um médico é pedir perdão, uma coisa que sua falta de compaixão nunca o deixou entender, como médico e como homem.

Com poucos movimentos e longos planos concentrados nos personagens, fotografia setentrional de Gunnar Fischer e música discreta e comovente de Erik Nordgren, Morangos Silvestres é uma rapsódia melancólica sobre a solidão como impossibilidade de relações humanas que remetam a um momento de felicidade com família, amores, amigos e o mundo. Uma rapsódia em que o presente vazio faz sofrer e lembrar o passado só agrava nosso desentendimento de tudo. E isso dói.* CACÁ DIEGUES É CINEASTA

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.