Análise: Inspiração shakespeariana dá poder ao live-action 'O Rei Leão'

O filme não economiza em cenas truculentas, ideias pesadas e mesmo contraditórias

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Por Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

William Shakespeare (1564-1616) continua a ser fonte inesgotável para a narrativa ocidental e não é por outro motivo que surge como inspiração para Rei Leão, da Disney.

Scarconvoca as forças da noite, as hienas, para juntos tomarem o reinode Mufase em "O Rei Leão" Foto: Disney Enterprises, Inc.

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  Como se sabe, na peça mais famosa de Shakespeare, Claudio mata seu irmão, o Rei, e casa-se com a rainha, Gertrudes. O filho do Rei, o príncipe Hamlet, é atormentado pelo fantasma do pai para vingar a família e retomar o trono e a honra, matando o criminoso. Após muita hesitação, Hamlet realiza o desejo paterno (vindo do além-túmulo) e a peça termina num banho de sangue daqueles que só Shakespeare sabia encenar. 

Em O Rei Leão, escrito por Jeff Nathanson e dirigido por Jon Favreau, a Disney faz, em live-action, o remake do desenho animado de 1994. Impressiona, de fato, o hiper-realismo com que os animais são recriados. Tudo é muito bem feito. E bonito. Mas, pode-se apostar, o poder do filme, no fundo, reside na recriação parcial da história de Hamlet, tão forte que parece inscrita em nosso inconsciente coletivo.

No filme, há o poderoso Rei Leão, Mufasa, que governa os animais como um soberano absoluto, porém justo, embora isso se possa discutir. A maneira como explica por que os antílopes servem de alimento leva a pensar num certo darwinismo leonino, embora disfarçado de uma frágil justificativa “natural”. Como o rei explica ao filho, quando os seres morrem, se transformam em grama, e, como os antílopes se alimentam de grama, serem devorados faria parte do “ciclo” natural. Bem, ninguém perguntou aos antílopes se eles estão de acordo com essa tese. Mas o reinado de Mufasa não é lá muito democrático e nele cada qual sabe seu lugar. 

Enfim, tirando certas fraquezas, o rei procura manter o equilíbrio do seu reino. Nasce-lhe o herdeiro, Simba, apresentado como sucessor à corte, isto é, à coletividade dos animais, por um babuíno que passa por autoridade religiosa do reino. Mas o trono é cobiçado por Scar, o irmão inescrupuloso do rei, que não hesita em montar uma armadilha para tomar o poder, fazendo ainda o pequeno Simba se sentir culpado pelo desfecho. Na sequência posterior da trama, encena-se aquilo que é conhecido como “jornada do herói”. Simba, já adulto, será convencido da sua missão, tirar do poder o usurpador e restabelecer a ordem no reino. Encontrará aliados (e aliadas, feminismo “oblige”) para se desincumbir de sua missão, pois ninguém faz nada sozinho, nem mesmo um leão. E pronto. 

Laurence Olivier é Hamlet no clássico de 1948 Foto: Two Cities Films

A trama é toda Shakespeare puro, com exceção de alguns detalhes, pois, apesar de bem adulto em alguns aspectos, Rei Leão é um filme para crianças. Talvez por isso - e também porque aumentaria e muito a duração do filme - seja atenuada a famosa “hesitação” de Hamlet em punir o culpado. Muito já se escreveu sobre essa particularidade, mas talvez o escrito mais famoso seja o de Sigmund Freud: Hamlet e o Complexo de Édipo. Por que Hamlet demora tanto em fazer justiça?, pergunta-se o pai da psicanálise. Talvez porque Claudio dorme com a rainha após haver assassinado o rei e Hamlet, inconscientemente, desejava fazer o mesmo, identificando-se por isso com o tio. Daí a hesitação: como punir alguém por fazer aquilo que eu também gostaria (sem saber conscientemente) de ter feito? Baita raciocínio, hein? Mas que, claro, não caberia numa produção Disney, voltado para “toda a família”, na qual não cabem alusões a sentimentos incestuosos por parte do herói. 

No mais, até que o filme não economiza em cenas truculentas, ideias pesadas e mesmo contraditórias. Há a cobiça do poder, o assassinato, e, em particular, a união do usurpador com a escória da sociedade (as hienas) para subir ao trono. Ou seja, todo um complexo de ideias violentas e politicamente incorretas que, representadas no mundo animal, parecem mais palatáveis do que quando encenadas por gente. 

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