Análise: Filme 'Ex-Pajé' é um ato de resistência simbólica ao etnocídio cultural

Longa de Luiz Bolognesi estreia nesta quinta-feira, 26

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Por Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

O primeiro sentimento diante de Ex-Pajé, de Luiz Bolognesi, é de perplexidade. De fato, como sentir-se indiferente diante do que é mostrado, o antigo pajé Perpera, dos Paiter Suruí, na Amazônia, “destituído” de suas funções com a chegada à região de uma igreja evangélica?

Cena do filme 'Ex-Pajé', de Luiz Bolognesi Foto: Buriti Filmes

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O espanto prossegue quando se sabe que Perpera passou a ser discriminado por sua própria comunidade, uma vez que o pastor rotulou suas atividades de “coisa do diabo”. Ele só volta a ser tolerado depois que o religioso, num gesto de benevolência, permitiu que trabalhasse como vigia da igreja. Há um sentimento de mal-estar, também, ao ver aquele indígena vestido de camisa social e gravata para prestar seus serviços ao culto que o alijou de suas funções sociais. 

No início do filme, leem-se palavras do etnólogo francês Pierre Clastres, que distinguem o genocídio do etnocídio. O primeiro se refere ao assassinato das pessoas físicas. O segundo, destrói culturas, quadros de referência nos quais as comunidades se reconhecem como tais. O que vemos em Ex-Pajé é um estudo, ao vivo, de um quadro de etnocídio. 

Outra cena impressiona. É quando duas pessoas vão consertar a iluminação elétrica da casa do ex-pajé e dizem que voltariam no dia seguinte. Ele pede que façam o serviço imediatamente. Não pode dormir no escuro porque os espíritos estão bravos com ele desde a chegada da igreja e poderão atormentá-lo durante a noite. Para combater a vingança dos espíritos, ele precisa de lâmpadas, de energia elétrica. Vamos vê-lo também instalar um grande máquina de lavar roupa, que serve à igreja provavelmente. E também quando pede ajuda para buscar gás, pois não tem força para levantar o botijão cheio. 

Os signos e utensílios da assim chamada “civilização” estão por toda parte – o gás, as armas, a eletricidade, os computadores, celulares, as roupas. Os nativos desistiram de andar pelados, porque, de acordo com o pastor, a nudez ofende Nosso Senhor Jesus Cristo. 

Há um dado aí. A presença da tecnologia não compromete a identidade indígena, ou, pelo menos, a sua cultura consegue conviver com objetos que facilitam a vida das pessoas, mas as fazem abandonar práticas ancestrais. Comunidades indígenas não são museus a céu aberto nem precisam ficar paradas no tempo. Apenas uma visão purista os imaginaria isolados, como se um curumim não fosse tentado pelos joguinhos eletrônicos que fascinam crianças de sua idade. 

Outra coisa é uma evangelização agressiva, que atinge a identidade cultural em seu cerne e a descaracteriza. Quando aquilo que representa a consistência social é demonizado, algo de muito grave está se passando. Por sorte, o filme indica que as práticas proscritas pela igreja evangélica continuam vivas no inconsciente indígena e voltam à tona em situações graves. É o que acontece quando uma das mulheres da tribo é picada por uma jararaca e fica entre a vida e a morte num hospital montado pelos brancos. 

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Nesse momento, o “ex-pajé” volta à ativa, embora de maneira discreta. Pois é ele quem dispõe da “eficácia simbólica” de que falava o etnólogo Claude Lévi-Strauss num escrito clássico sobre o xamanismo. Ex-Pajé é um filme sobre a resistência ao etnocídio. 

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