Análise: Em 'Além das Palavras', para uma alma sensível, a vida apenas não basta

Filme funciona como biopic bastante completo

PUBLICIDADE

Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Por Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

Não há dúvida que o título original de Além das Palavras, A Quiet Passion, descreve melhor a essência da personagem. Emily Dickinson (1830-1886) manteve, de fato, uma paixão tão febril quanto discreta pelas palavras. A vida desta poeta é descrita com o mesmo calor humano, porém sem arroubos, pelo diretor Terence Davies. 

PUBLICIDADE

O filme funciona como biopic bastante completo. Não é impressionista nem despreza detalhes biográficos. Vemos o desenvolvimento da garota de boa família em um pensionato da Nova Inglaterra, no século 19. A jovem Emily é rebelde. Revolta-se contra a subserviência aos preceitos da fé cristã e desperta a ira dos superiores. E também a do seu pai (Keith Carradine), retratado como homem justo, porém rígido. Mas Emily não cede. Acaba por deixar a escola, a South Halley Female Seminary. 

Emily mantém, ao longo de sua breve vida, intacta a sua independência em relação ao ambiente. Parece frágil, mas é determinada. O que lhe custará alto preço em termos de uma vida social bastante limitada. Mas isso não parece importar tanto. Conta mesmo a faina diária com as palavras, a luta em busca da quintessência da poesia. 

Cena de 'Além das Palavras' Foto: Cineart Filmes

Devoção que implica uma vida retirada, em meio à família, só em seu quarto, no qual luta com as armas de papel e tinta para domar sua forma expressiva. A batalha, sem dúvida, será vitoriosa, já que hoje Emily Dickinson é considerada uma das mais importantes poetas em língua inglesa. Mas a que preço? Será que as pessoas negociariam sua felicidade presente em troca da glória na posteridade? Nada mais duvidoso. É possível que muitas almas sensíveis trocassem a fama dos pósteros pelo reconhecimento do seu tempo, mas muitas vezes isso não é possível e os exemplos estão aí, aos montes - Kafka, Van Gogh, etc. 

Querendo ou não, a vida de Emily deu-se dessa maneira. Insubmissa e arredia, sentindo-se presa de um corpo inadequado e de um rosto que não a satisfazia, entregou-se à sua arte. Pouco teve de vida social e também pouco publicou em vida. Se tanto dez poemas, alguns sem assinatura. Necessitada de atenção, manteve paixão platônica pelo clérigo Charles Wodsworth, que alguns críticos desconfiam ser fonte de inspiração de muitos dos seus escritos. Acresce a tudo a saúde frágil, que acabou por lhe determinar a vida breve. 

Creio ser Merleau-Ponty, em Le Doute de Cézanne, quem escreve que tal vida, a do pintor, era necessária para que criasse aquela obra. O mesmo pode ser dito de Emily Dickinson. Quem lê sua poesia, de tanto rigor e melancolia, sente que uma existência deveria ser oferecida em sacrifício para que nascesse tanta beleza. Apenas em seu quarto Emily era livre, através de sua poesia. A interpretação de Cynthia Nixon para essa alma sensível e solitária é inesquecível. O filme todo o é. 

Deve-se dizer que o experiente Terence Davies encontra o tom justo para conduzir essa história em tom menor. A reconstituição de época é nada menos que impecável, sem que se veja traço do que às vezes é consequência do rigor excessivo, o academicismo. Nada engessa o filme. Ele flui. É uma obra muito inspirada, talvez uma das mais tristes da temporada. Porém muito evocativa de algo difícil de captar, a arte que nasce porque, para as almas sensíveis, a vida não basta. 

Publicidade

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.