Ana Carolina lança "Gregório de Mattos"

Filme estreou em grande estilo em Salvador. Faz da trajetória do poeta uma metáfora do País. Na tela, Waly Salomão, Marília Grabriela e Ruth Escobar

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Por Agencia Estado
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"Coitadinho do Brasil." Ana Carolina está assim: triste pelo País e não é por causa da alta do dólar que deixou os brasileiros assustados esta semana. Os motivos de Ana Carolina são muito mais viscerais, mais profundos, têm a ver com o novo filme que ela acaba de lançar, na última quinta-feira à noite, na capital baiana. Ana Carolina está triste pelo Brasil porque acha que o País não tem jeito. A prova é Gregório de Mattos. É, a rigor, o que ela vem achando, desde que estreou na direção de longa, com o documentário Trabalhadores do Brasil, no qual psicanalizou o mito de Getúlio Vargas, até como forma de entender a complexidade do nosso gigante adormecido. A psicanálise continuou na sua trilogia (Mar de Rosas, Das Tripas Coração e Sonho de Valsa), passa por Amélia e chega a Gregório de Mattos sobre o poeta do século 17. A estréia, em Salvador, foi em alto estilo. Ana Carolina, que havia inscrito o projeto no Concurso do BNDES em 1999, ganhou o dinheiro para fazer um curta de 20 minutos que ela esticou até fazer um longa de 70 minutos. Apesar da modéstia de recursos, conseguiu, graças ao criativo trabalho do diretor de fotografia Rodolfo Sanches, apresentar um visual elaboradíssimo que dá a Gregório a textura de um autêntico documento de época. Ela rodou em fortalezas de Niterói, no Estado do Rio, simulando a Salvador de 1600. Somente após a captação das imagens, ganhou apoio da Bahiatursa e da prefeitura de Salvador, mas teve de se comprometer a fazer a estréia na capital baiana. Reuniu ontem intelectuais e celebridades no Shopping Iguatemi. "Fiz esse filme com os meus amigos para os amigos de Gregório de Mattos", disse a diretora, antes da exibição. Os amigos que ela colocou na tela são o poeta Waly Salomão, a apresentadora Marília Grabriela, Xuxa Lopes, Rodolfo Bottino e Ruth Escobar, que volta a atuar depois de um hiato de 22 anos em que se dedicou só a empresariar espetáculos teatrais. Marília tomou gosto pela representação, após a experiência com Gerald Thomas. Ela possui desenvoltura cênica, mas sua grande marca é a voz, que sabe projetar. Ruth não precisou ser cooptada por Ana Carolina. "Ela fez assim (faz um gesto com o dedo) me chamando e eu vim correndo." Ruth também está louca para atuar. Gregório de Mattos apenas fez aflorar essa vontade que já vinha muito grande dentro dela. Antes de Salvador, esteve em Nova York e vai agora, no fim do mês, a Paris, em busca de textos para ela própria atuar. Quer fazer uma personagem no registro "cômico patético", que ela acha o melhor para o seu estilo. "É um filme simples", diz Ana Carolina. Na verdade, não é tão simples assim. A figura de Gregório de Mattos, melhor seria dizer a tragédia do poeta, é a do País e permite à diretora desenvolver mais um capítulo dessa sua elaborada e consistente tentativa de mergulhar na grande problemática nacional. Desde Trabalhadores do Brasil, Ana Carolina não dava voz aos homens no seu cinema. Sua trilogia é, basicamente, uma tentativa de compreensão do universo feminino. Quase 30 anos depois - o filme de Getúlio é de 1974 -, ela se debruça novamente sobre o universo dos homens. É curioso que a trilogia seja puramente ficcional e Trabalhadores do Brasil e Gregório de Mattos recorram a personagens que existiram. A mulher é uma ficção para Ana Carolina, a realidade é o homem. "Fiz esse filme com o rigor de um documentário, mas ele não é isso. Está muito mais próximo da poesia, que era o que me interessava expressar na tela." É um filme sobre a palavra, dá de 10 em Boccage, outro filme sobre poesia, com o qual Djalma Batista Limongi também tentou expressar um universo de sexo e violência verbal. O filme de Ana Carolina é declamado, barroco, glauberiano. Ana Carolina tinha Glauber Rocha como referência, na cabeça, o tempo todo. "Se o Glauber estivesse vivo talvez o chamasse para fazer o Gregório", ela diz. Glauber, Ana Carolina está convencida disso, é o grande poeta do audiovisual no País. Na ausência de Glauber, Waly Salomão é perfeito no papel. "Ele não é um ator, mergulha no personagem sem a consciência de estar representando", explica a diretora. E ela acrescenta: "Fiz gato e sapato do Waly." Metáforas - O resultado é um filme que talvez seja difícil para espectadores vidrados na estética de causa e efeito de Hollywood. Ana Carolina não conta propriamente uma história, mas há em Gregório um movimento que permite entender claramente o que ela quer dizer como metáfora sobre o Brasil. O poeta é satírico, até mesmo escatológico. Fala muito em sexo, agride verbalmente a platéia com seus palavrões. É um mérito de Ana Carolina: no cinema e no teatro brasileiros atuais, o palavrão virou simplesmente uma firula dita pelos atores globais que estão impossibilitados de falar essas palavras na televisão. O público ri e fica por isso mesmo. No caso de Ana Carolina, ela devolve ao palavrão a sua função mais dramática. "É um ponto, uma vírgula, mas agressivo", ela explica. Seu personagem é isso, mas é muito mais: Gregório de Mattos vai se dissolvendo em cena. É o próprio Brasil que entra em crise no novo filme de Ana Carolina. Na realidade, não se trata de um entrar em crise. As circunstâncias podem mudar, mas a diretora, como autora, está convencida de que essa é uma tragédia brasileira secular.

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