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"Amor à Flor da Pele" é obra-prima

O filme é uma obra-prima de Wong Kar-Wai que estréia com Maggie Cheung, a maior estrela de Hong Kong. Narra a aproximação entre um homem e uma mulher, ambos casados e vivendo numa pensão

Por Agencia Estado
Atualização:

Sua carreira começou quando ela tinha apenas 17 anos e logo Maggie Cheung virou uma estrela, a maior de Hong Kong. Fez comédias, melodramas, filmes de ação, aventuras de kung fu. Numa delas, estrelada por Jackie Chan, entrou na onda dele e dispensou dublê numa cena particularmente perigosa. Quase morreu. Aquilo foi um alerta para ela. "Nunca mais vou arriscar minha vida por um filme desses; arriscaria por Amor à Flor da Pele, disse Maggie no ano passado, em Cannes. A obra-prima de Wong Kar-Wai estréia nessa sexta-feira. Nada menos de acordo com o espírito carnavalesco do que esse drama romântico suntuosamente filmado. Amor à Flor da Pele é o mais belo dos filmes. Luc Besson, presidente do júri no Festival de Cannes de 2000, nunca será perdoado por ter preferido o mistificador Dançando no Escuro, de Lars Von Trier, a Amor à Flor da Pele. Foi a rodagem mais difícil e cansativa da carreira de Maggie. Como ela disse, cansava-se menos nas cenas de lutas, diversas vezes repetidas, dos filmes de Jackie Chan. Lá ela só comprometia o físico. No filme de Kar-Wai, o comprometimento era total, emocional. E a rodagem foi longa. Durou nove meses, o tempo de uma gestação, e aí, quando ela achava que estava tudo concluído, o diretor chamou-a para mais uma semana de retakes, que virou um mês. Depois, outra semana que virou outro mês e, assim, sucessivamente, até que Amor à Flor da Pele completou 15 meses de rodagem. Isso tem a ver com o método de Kar-Wai. Ele escreve um roteiro detalhado e filma muito. Depois, desconstrói o filme na sala de montagem, eliminando cenas, diálogos, concentrando-se só na essência. Suas elipses, o próprio Kar-Wai confessou, também no ano passado, em Cannes, ele as constrói na montagem. Por princípio, Maggie não gosta de ver o material filmado, antes que o filme fique pronto. Com Kar-Wai, parte das suas atividades diárias era sentar-se com o diretor e ver e rever os planos já feitos. Kar-Wai analisa o material, estuda as combinações possíveis, vê o que vai eliminar, o que é preciso acrescentar. E, quando necessário (e sempre é), filma de novo. Por essa maneira de trabalhar o filme na montagem Kar-Wai poderia ser considerado o herdeiro asiático de George Stevens, o grande mestre americano que também filmava muito e depois construía o filme na montagem. Talvez não seja a única aproximação possível entre os dois, pois Amor à Flor da Pele percorre o mesmo território das emoções e do romantismo que Stevens trilhou em Um Lugar ao Sol, claro que com outros objetivos, com outras preocupações, estilísticas até mesmo. Kar-Wai, com efeito, não é um clássico, como Stevens. Seu classicismo é só uma aparência. É mais moderno que Von Trier (em Dançando no Escuro, pelo menos). Há críticos que reclamam de um certo maneirismo do cinema de Kar-Wai. Até eles reconhecem que, dessa vez, o maneirismo encontrou o tema ideal. Mas o próprio diretor diz que talvez não tivesse feito esse filme se não houvesse a experiência anterior de Felizes Juntos. O filme anterior desconcertou muita gente, não por ser a história de um amor terminal, mas por ser uma love story gay. Dois homens dilacerando-se de paixão, não podendo viver juntos, nem separados. O amor, de novo. E, agora, à flor da pele, entre um homem e uma mulher. Talvez seja a história de amor mais pudica que o cinema contou em muitos anos. Mas o pudor não nasce, aqui, de uma necessidade de sublimação. Kar-Wai não fez um filme pudico como atitude política nestes tempos de aids. Um homem e uma mulher, ambos casados e vivendo numa pensão. A mulher dele está longe, o marido dela, também. A relação é complicada. Pequenos gestos de aproximação e afastamento, olhares. E tudo ao som de Nat King Cole, Aquellos Ojos Verdes e Te Quiero Dijiste, pois Kar-Wai ama os compositores ocidentais e os ritmos latinos (colocou Caetano Veloso na trilha de Felizes Juntos, lembram-se?). A síntese do filme está na história do segredo que é preciso enterrar e que volta, visualizada, no desfecho, no templo. Filho - Kar-Wai deixa, intencionalmente, um monte de perguntas no ar. Os protagonistas (Maggie e o não menos notável Tony Leung, melhor ator em Cannes, no ano passado) ficam só nos movimentos do desejo, de quem é aquela criança? De certa maneira Maggie acaba com todo o mistério, quando diz que sim, eles tiveram relações sexuais, sim, o filho é deles. Ela sabe porque rodou essas cenas e, intimamente, não perdoa Kar-Wai por ter eliminado a cena de sexo ("Uma das mais belas que já vi", diz). Havia material para três filmes, pelo menos. Kar-Wai constrói para desconstruir. Fez o que poderá ser um filme-farol para a nova década, o novo século, o novo milênio. Amor à Flor da Pele passa-se nos anos 60. Há um fato político que o diretor usa para situar a época e, talvez, mais que isso, para contrapor à grande História a história dessas pequenas vidas (o que Ettore Scola também fez, em outra obra-prima, Um Dia muito Especial). Maggie era garota em Hong Kong, nos anos 60. Kar-Wai, rigoroso nos diálogos (não permite a menor improvisação no set), deixou-a livre para criar os gestos e movimentos da personagem. Maggie foi buscar um som da sua infância como referência - os saltos altos de sua mãe, ecoando nas salas e corredores da casa. De salto alto, um mistério que também inspirou Pedro Almodóvar no seu filme de mesmo nome.

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