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"Amarcord" volta às telas em cópia nova

O mais memorialístico dos filmes de Fellini, e talvez o mais amado, reestréia nesta sexta. Vencedor do Oscar em 1974, Amarcord consegue ser a um só tempo italiano e universal

Por Agencia Estado
Atualização:

"Amarcord" quer dizer "Eu me recordo" no dialeto de Rimini. Isso significa que que este é o mais memorialístico dos filmes de Fellini, diretor conhecido por estar sempre debruçado sobre as próprias recordações. Desta vez ele vai direto a elas, sem o subterfúgio de qualquer trama. Tudo é secundário, tudo é pífio e ilusório diante do mundo da memória, vasto, seguro, encantador. No entanto (e quando se fala de Fellini há sempre um porém), Amarcord nada tem daquele memorialismo narcísico, chato e monótono, no qual o sujeito fica contemplando o próprio umbigo, na suposição de que os acontecimentos particulares de sua vida interessam profundamente ao próximo. Fellini é diferente. Apesar de tratar de temas e épocas e situações bem particulares, fala diretamente para cada um de nós. Talvez porque nesse memorialismo haja tanto de verdade como de fantasia, o que o torna mais próximo de quem não partilhou experiências reais, mas partilha, isso sim, do patrimônio comum da imaginação humana. Italiano e universal, como convém, Amarcord talvez seja o mais amado dos filmes de Federico. Pode não ser o maior, não ter a densidade de A Doce Vida ou a invenção de Oito e Meio. Mas é adorável. Ganhou o Oscar de melhor produção estrangeira em 1974 e foi exibido no mundo todo. Tornou universalmente conhecidos personagens como a vendedora de cigarros peituda, o pai de família socialista, o cunhado vagabundo, o tio louco, a garota fácil da cidade e tantos outros. Cenas inteiras ficaram na retina dos espectadores, como a visita de Mussolini a Rimini, a passagem do transatlântico Rex, o casamento da Gradisca com um carabiniere. Reencontrar essas cenas e esses personagens, na tela grande e com cópia brilhando de nova, é uma das formas de felicidade desta vida. O possível alter ego do diretor é o garoto Titta (Bruno Zanin), cujo pai, Aurélio, empreiteiro, sustenta a família toda, incluindo o cunhado ocioso. Aurélio é socialista e o ambiente não anda bom para eles pois Mussolini está no poder. Na visita do Duce à cidade algum engraçadinho coloca no campanário da igreja uma vitrola tocando a Internacional, o que desencadeia a caça às bruxas no local. Há essa tonalidade política, mas o tom pessoal predomina. Fala da iniciação amorosa de Titta (desastrada como costuma ser), da escola, onde os alunos se divertem atormentando o pobre professor de filosofia, da curiosidade sexual sempre atiçada numa cidade pequena, com os homens cobiçando a conhecida Gradisca (Magali Noel) ou qualquer outra mulher que se apresente no pedaço. É (também) um estudo sobre a província, como já fora Os Boas-Vidas, 20 anos antes. O ponto de vista adolescente, faz com que Titta conduza os quadros móveis de que se forma o filme. E o olhar do garoto, que é também o nosso como espectadores, se abre para o mundo a ser descoberto. Mundo da sexualidade, da estupidez política, do ridículo, da graça, da alegria, da morte, da música. E, por falar em música, em Amarcord temos um dos pontos altos da parceria entre Fellini e Nino Rota. A trilha sonora não acompanha a trama - ela se entranha no próprio tecido da narrativa. Por exemplo, numa das primeiras cenas, quando a câmara percorre a cidade e apresenta os personagens, o barbeiro pega a flauta e toca um dos temas satíricos de Rota. A música comenta e faz parte do que se vê. Acompanha e delimita as variações de tom, que vão da ironia, passam pela caricatura e chegam ao sentimentalismo. Só que cada uma dessas tonalidades aparece sempre misturada a outra, vacinando-se reciprocamente contra os excessos. Assim, Fellini sabe que a emoção em estado bruto pode ser sentimentalóide, mas não quando misturada a certa dose de ironia. E esta, para não cair na armadilha do sarcasmo, pode vir temperada pela tolerância e pela compaixão. Assim, a Gradisca é apenas uma moça meio fácil, que quer se dar bem na vida e ser feliz. Fica falada pelos bares da cidade, mas seu casamento, no final, é emocionante. Aurélio (Armando Brancia) pode ser ridículo em suas crises de nervosismo, mas é notável sua humanidade quando perde a esposa. O "zio" louco, vivido pelo grande Ciccio Ingrassia é cômico até mais não poder quando sobe em uma árvore e grita que quer uma mulher. Mas é comovente, como são os loucos mansos. Fala-se sempre desses personagens caricaturais, mas às vezes se esquece que nenhum deles tem dimensão única. São complexos, ricos, diversos, humanos, enfim. Podemos rir desses personagens de Fellini. Mas eles também nos emocionam. Porque tudo convive numa vida comum, essa experiência que vai do ridículo ao sublime. É preciso um grande artista para nos mostrar essa obviedade. Amarcord. Itália/França 1973. Direção de Federico Fellini. Duração: 127 minutos. 14 anos.

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