Altman critica sociedade texana em novo filme

Em entrevista ao Estadao.com.br o cineasta diz querer mostrar como se comportam as mulheres em Dallas, lugar onde o que conta é o exibicionismo e o dinheiro

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Por Agencia Estado
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Se há um lugar famoso no Lido - essa ilhota que fica separada da parte histórica de Veneza pela laguna - é o Hotel des Bains. Meca da burguesia européia do início do século, o vetusto edifício foi usado como locação por Luchino Visconti na filmagem de Morte em Veneza, de Thomas Mann. Aqui, num desses salões onde o personagem de Visconti, o professor Aschenbach, flertava com o garoto Tadzio, o veterano diretor Robert Altman recebe a reportagem para uma entrevista. Altman tem 75 anos e está concorrendo em Veneza com Doctor T. and the Women (Doutor T. e as Mulheres), tendo Richard Gere no papel principal, o de ginecologista em crise. Aqui mesmo em Veneza, em 1993, Altman já levou um Leão de Ouro, o prêmio máximo do festival, com uma de suas obras-primas, Short Cuts - Cenas da Vida, do qual não seria exagero dizer que se trata de uma das grandes manifestações do cinema nos anos 90. Devemos a ele, também, filmes como Nashville, Mash e O Jogador, além dos mais recentes Prêt-à-Porter, Kansas City e A Fortuna de Cookie. Devemos a Altman, na verdade, toda uma concepção de cinema, entendido como arma irônica de crítica social, arte da elegância aliada a um pensamento corrosivo de fundo. Em Nashville, o alvo era o mundo country norte-americano; em Mash, os bastidores da vida militar; em O Jogador, a guerra de egos em Hollywood, e, em Prêt-à-Porter, a fogueira das vaidades do universo da moda. Qual seria o alvo de Doctor T.? "Bem, não existe um alvo crítico propriamente dito", diz ele. "Quis mostrar um pouco como se comportam as mulheres em Dallas, lugar onde o que conta é o exibicionismo e o dinheiro; e também desejei examinar a cabeça de um sujeito que acredita saber tudo sobre mulheres e na verdade não sabe nada de nada." Altman pode não admitir de cara, mas, fica claro para quem vê o filme que não nutre grande admiração pela sociedade texana. As mulheres são descritas no limite da caricatura e os homens praticamente não existem. A sala de espera do Doutor T., palco de abertura do filme, transforma-se logo numa chacrinha animada pela peruagem das madames, que falam e gritam sem parar, com seus vestidos de cores exageradas, seus penteados altos e jóias. "Elas são assim mesmo, mulheres da auto-exposição, mas eu não as quero mal por isso", diz, rindo. Além disso, Altman retrata Dallas como a terra por excelência da superficialidade. Uma de suas personagens, no filme uma das filhas de Gere, é guia turística. Costuma levar os forasteiros à principal atração "cultural" da cidade: o ponto exato onde John Kennedy foi assassinado em 1963, com um tiro de fuzil disparado por Lee Oswald de um edifício vizinho. "Na verdade, ninguém tem motivo sério para morar lá, a não ser que seja um daqueles milionários do petróleo", segreda ao interlocutor. Mesmo assim, Altman foi acusado, no festival, de ter feito um filme misógino. Algumas mulheres acharam que ele pegou pesado em sua visão caricatural das texanas, que seria extensível ao gênero feminino como um todo. Ele nega. Diz que não apenas tem grande respeito pelas mulheres como as adora. Foi criado numa família na qual as mulheres eram maioria e figuras predominantes. "Amo as mulheres, e acho sinceramente que elas são mais profundas e inteligentes do que os homens", diz. Por isso, o filme não deve ser entendido como um tratado realista ou um documentário sobre as relações entre homens e mulheres. "É apenas um ensaio, uma maneira de abordar um tema e não uma posição fechada sobre o mesmo", diz. Para ele, o fundamental do seu trabalho é a posição de ignorância em que se coloca o personagem principal. Gere é ginecologista, a especialidade médica mais sujeita a piadinhas sexistas (trabalha onde todo mundo se diverte, etc.). Pela profissão, é tido como o sujeito que mais e melhor entende as mulheres. Altman quer mostrar que não é nada disso. Gere vive completamente perdido nesse mundo feminino. Tem duas filhas que não compreende e fica pasmo quando uma delas se revela lésbica. Trata tão bem a esposa, que fica louca, no sentido clínico do termo. Ela é tão amada, tão paparicada, tem seus desejos tão atendidos, que não tem mais nada a querer do mundo - e então endoidece. No auge de sua crise, Gere arruma uma amante, uma treinadora de golfe interpretada por uma ótima Helen Hunt - e ela é uma figura muito mais forte do que ele. Enfim,?? Doctor T. fala de um personagem masculino em crise, perdido num mundo de mulheres - um pouco à maneira do Snaporaz, de Marcello Mastroianni, em A Cidade das Mulheres, de Federico Fellini. Gere está perdido, mas dá uma virada no fim do filme. Uma virada que o diretor implora não seja revelada aos leitores. "Estragaria o desfecho da história, que reserva uma surpresa aos espectadores", diz. Respeitando a vontade do cineasta, só se pode adiantar que o fim se refere a uma espécie de renascimento do Doutor T. Um renascimento problemático, e não indicativo que a partir de então ele terá um conhecimento maior da vida e das mulheres e, portanto, poderá comportar-se com mais sabedoria. Mas, certamente sairá mais humano da experiência. Como em outros filmes de Altman, não há propriamente um happy end em "Doutor T. e as Mulheres". Há o registro de uma sociedade que não funciona direito, de personagens que não agem segundo suas vontades, de fatos que acontecem sem que ninguém os deseje voluntariamente. "Muita gente já me chamou de pessimista por isso", diz o diretor. "Acho que sou apenas realista." Essa obra cinematográfica, escrita com temas diversos e estilos variados, no fundo forma um conjunto pessoal. "Vejo meus diferentes filmes como se fossem capítulos de um único e mesmo livro", diz. E que capítulo dessa obra seria Doctor T.? "Bem, espero que não seja o capítulo final", diz o diretor, que já está preparando novo filme, a ser rodado na Inglaterra, durante os anos 30. "Vendo meus trabalhos em retrospecto, acho apenas que fui aperfeiçoando o estilo e a técnica, filmando alguns mesmos temas de fundo, mas com mais facilidade, com mais fluidez; só temo perder a naturalidade." Quase uma paráfrase de Picasso, que dizia que quando aprendesse a pintar perfeitamente com uma mão, mudaria para a outra. Só que no cinema isso não é possível.

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