Allen retoma humor escrachado em "Trapaceiros"

Filme marca o retorno ao gênero que o diretor explorou no início de sua carreira, há mais de 30 anos. Estréia nesta sexta-feira

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Por Agencia Estado
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Trapaceiros é um diálogo bem-humorado de Woody Allen consigo mesmo. Com este filme, ele volta, 31 anos depois, ao mesmo tema de Um Assaltante Bem Trapalhão, que está lá atrás, no início da sua carreira. Entre os dois, correu muita água, vieram a consagração, o sucesso e a angústia existencial; um casamento desfeito e acusações de pedofilia. Veio outro casamento, este com o, digamos assim, pomo da discórdia que o levou à separação com Mia Farrow. Depois, a vida reencontrada. E a opção, na maturidade, pela comédia rasgada, a volta à inspiração primeira, que fez do humilde humorista de palco um grande nome do cinema. A história de Trapaceiros é de um humor escrachado e muito pouco intelectual - pelo menos na superfície. Mesmo porque Ray Wrinkler, o personagem interpretado pelo próprio Allen, é tudo menos um pensador. Delinqüente menor, era chamado na prisão de "o cérebro". Ele se orgulha disso, mas um antigo parceiro garante que o apelido foi dado por ironia. De volta às ruas, Ray decide aplicar o grande golpe, assaltar um banco através de um túnel cavado do imóvel vizinho, uma pizzaria que foi à falência. Para servir de fachada para o golpe, a mulher de Ray, Frenchy (Tracey Ullman), abre no imóvel uma loja de biscoitos. Enquanto isso, Ray e sua turma vão escavando o túnel. Se as tentativas do bando não são exatamente um sucesso, o mesmo não se pode dizer da venda dos biscoitos. Os cookies de Frenchy tornam-se a coqueluche de Nova York e dessa maneira o casal enriquece. Com a subsistência mais que garantida, ele quer descansar na Flórida. Ela resolve tornar-se chique e culta. Uma típica nova-rica e portanto predisposta a cair na lábia de um espertalhão, vivido por Hugh Grant. A historinha é essa e mais simples não poderia ser. O que ela mostra de notável é a conservação intacta do instinto cômico de Woody Allen. Curioso como a mais banal das trapalhadas se torna divertida quando encenada por um humorista de gênio. Um cano de água furado por equívoco ou um tropeção bastam como esquete cômico. É um tipo de humor corporal, físico, que Allen domina muito bem. Atua com o físico desengonçado, com o rosto expressivo. Mas, claro, nada supera seus diálogos afiados, alusivos, cheios de duplos sentidos. Porque a arte cinematográfica de Allen é também uma arte da linguagem, como foi para os Marx, em especial para Groucho, a cabeça pensante dos irmãos. A competência humorística de Woody Allen pode não ser surpresa para ninguém, mas a de Tracey Ullman é. Pelo menos para quem não a conhece da TV por assinatura. Atriz britânica, já tinha atuado com Allen em Tiros na Broadway e com Robert Altman em Prêt-à-Porter. Mas é em Trapaceiros que ela solta toda a sua veia cômica. Quando o filme passou, fora de concurso, no Festival de Veneza de dois anos atrás, Tracey divertiu os jornalistas na coletiva de imprensa. Woody Allen, como de hábito, não compareceu (se não foi pegar um Oscar, por que iria a Veneza durante o festival?), e Tracey roubou a cena. Contou como era trabalhar com um diretor famoso como Allen e a dificuldade que fora para ela, uma britânica, imitar o sotaque suburbano que a personagem pedia. Trapalhões - Aliás, a segunda parte do filme é mais de Tracey que de Allen. A atuação dela sobe quando contracena com o picareta culto vivido por Hugh Grant. Enquanto isso, com a mulher ocupada em aprender rudimentos da arte da Renascença, Ray deve se consolar com a tonta May (Elaine May, também ótima), com quem faz um belo par de trapalhões. Enfim, Trapaceiros é um filme para se divertir, limpar o fígado, esquecer as aflições do cotidiano. Só isso? Claro que não. Allen sabe muito bem que o melhor humor é aquele que cutuca a vida real, critica-a, areja a mente do espectador. De modo que há muita seriedade em Trapaceiros, devidamente travestida em humor. Rindo é que castiga melhor os costumes, diziam os antigos. Allen sabe disso e sempre adotou a prática. O personagem de Ray escapa ao estereótipo do humor judaico, popularizado pelo próprio Allen, e vai um pouco além. Ele interpreta o homem comum americano, que gosta de um bom hambúrguer, ama cerveja e curte beisebol. Acredita na livre iniciativa e esta crença o leva ao assalto. O fato de ser um perdedor - um "looser", o pior insulto que se pode aplicar a um norte-americano - o joga na periferia da vida, mas, no fundo, ele não está nem aí. Frenchy, sua mulher, é mais bem-sucedida. Quando ganha dinheiro, e desta vez honestamente, acha que a melhor coisa a fazer com ele é ostentá-lo. Entende que a grana a coloca em posição de relevo na sociedade e precisa instruir-se para merecer o status. É o que a leva à desgraça. E depois à redenção. Assim, Trapaceiros é uma pequena e divertida fábula sobre a vida moderna. Faz bem à alma ver que tudo que alimenta a fornalha das vaidades - competição, esnobismo, a cultura de verniz, o exibicionismo - não passa de bobagem. O que vale mesmo está em outra parte. O riso liberta e só nos cabe agradecer aos humoristas de gênio que nos fazem ver o óbvio. Trapaceiros (Small Time Crooks) - Comédia. EUA/2000. Direção de Woody Allen. Duração 94 minutos.

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