Alec Guinness, o gênio místico e inseguro

O ator que morreu sábado, aos 86 anos, nasceu pobre e bastardo e trilhou carreira de sucesso sem vergonha de assumir sua insegurança, flertando com diversas religiões

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Por Agencia Estado
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Em 1991, o British Film Institute deu seu prêmio de carreira ao ator Alec Guinness. Antes dele, haviam recebido o troféu, entre outros, o cineasta David Lean e o também ator Laurence Olivier. Modesto, Guinness disse que se sentia honrado, mas não podia querer se comparar ao grande Olivier, este sim, um gênio da representação. Olivier era mesmo um gênio. Talvez tenha sido o maior ator do século, mas Guinness era da mesma estirpe. O ator que morreu no sábado, aos 86 anos, num hospital de West Sussex, costumava ser chamado de mestre do disfarce, ou homem das mil caras. Mudava de um papel para outro, às vezes exagerava no maneirismo, mas deixa o legado de uma das carreiras mais extraordinárias, não só do teatro e do cinema da Inglaterra, mas de todo o mundo. Sir Alec Guinness nasceu pobre e bastardo, em Londres, em 1914. Na sua autobiografia, Há Males Que Vêm para Bem, fala das dificuldades de sua infância e de como foi difícil conseguir estabelecer sua reputação como ator. Ao contrário da maioria dos astros e estrelas, que usam as autobiografias para acertos de contas ou lavagem de roupa suja, Guinness é tão tímido, mais até do que modesto, que prefere falar dos outros a falar dele mesmo. É um caso raro de biografia que, de certa forma, esconde o biografado, preferindo contar suas aventuras ao lado dos maiores atores do mundo. Morreu sem concretizar seu sonho - no livro, ele conta que seu maior desejo era conhecer o pai que o rejeitou. Talvez por esses problemas na infância, não tinha vergonha de admitir que era um homem inseguro - característica que manteve mesmo depois de ganhar o Oscar (por A Ponte do Rio Kwai, em 1957) e ficar milionário por suas atuações no cinema. Perguntaram-lhe justamente isso, certa vez - como o ator adulado e de qualidade indiscutível podia ser inseguro? Sua resposta - "Não seria quem sou se pudesse responder a essa pergunta." Disposto a tornar-se ator, o rapaz pobre usava tudo o que ganhava com o emprego numa firma de publicidade para financiar o curso de interpretação (no Fay Compton Studio of Dramatic Art). Sofreu não poucas decepções no meio do caminho, que podem ter contribuído para estimular (e fortalecer) sua crônica insegurança. A lendária Martita Hunt, que formou não poucos atores ingleses, aconselhou-o certa vez a procurar outra profissão, porque ele não era bom na que escolhera. E quando foi fazer um teste para uma montagem teatral de Antônio e Cleópatra, de Shakespeare, o diretor não deixou por menos e lhe pediu que deixasse o palco imediatamente, que fosse procurar alguém que o ensinasse a representar porque, com certeza, não era um ator. Era - e conseguiu prová-lo numa série memorável de filmes, além de interpretações no teatro que os críticos de língua inglesa nunca se cansaram de elogiar. Foi assim que o seu Macbeth, ao lado da francesa Simone Signoret (como Lady Macbeth), fez furor nos anos 60. O teatro era um sacerdócio para ele, o cinema, um prazer. Sua marca - a versatilidade. O homem dos mil disfarces não mudava apenas de cara para servir ao papel. Mudava também a postura, a ênfase, o próprio registro interpretativo. Conseguia ser bom na comédia e no drama. E virou ídolo até das novas gerações. Afinal, Guinness ajudou a viabilizar o primeiro Guerra nas Estrelas, de George Lucas, ao aceitar fazer, por quase nada, o papel de Obi Wan-Kenobi no clássico de aventuras e ficção científica de 1977. Entre suas criações memoráveis no cinema estão as máscaras que usou na comédia O Quinteto da Morte, de Alexander Mackendrick, um marco da comédia inglesa dos anos 50. O humor negro do diretor não seria tão eficiente sem as participações de Guinness e Peter Sellers , à frente de um elenco em que até o menor coadjuvante era perfeito. Mas a grande associção no cinema foi mesmo com o mestre David Lean, com quem ele fez uma série de filmes. Grandes Esperanças, Oliver Twist, os épicos intimistas da grande fase - A Ponte do Rio Kwai, Lawrence da Arábia, o próprio Doutor Jivago. Lean seguiu fiel a Guinness até seu último filme, Passagem para a Índia. Para o grande cineasta, Guinness foi inglês, árabe, russo, indiano. Loucura - O Oscar veio pelo papel como o arrogante coronel inglês que dedica o melhor de seu esforço à construção de uma ponte para o inimigo, convencido de que, ao colaborar com o comandante japonês Sessue Hayakawa, estará confirmando a supremacia inglesa. No fim, ele tenta impedir a destruição da ponte do rio Kwai e a reflexão do cineasta é que tudo aquilo é uma loucura - a guerra, o fanatismo do comandante japonês, a auto-suficiência do inglês. A Academia de Hollywood rendeu-se e A Ponte do Rio Kwai foi coberto de Oscars, entre eles os de melhor filme, diretor e ator. Contribuíram para isso as cenas de Guinness assobiando a marcha militar, que virou marca registrada do filme, as imagens da solitária - que terminaram servindo de modelo, anos depois, para o personagem de Steve McQueen em Fugindo do Inferno, de John Sturges. Guinness, colocado nas nuvens por A Ponte do Rio Kwai, foi duramente criticado na associação imediatamente seguinte com Lean. O príncipe Faiçal de Lawrence da Arábia foi considerado artificioso pela crítica. Era artificioso mesmo - aquela maneira de franzir a sobrancelha, a dicção carregadamente british quando ele dizia a Lawrence e Ali, os personagens de Peter O´Toole e Omar Sharif - Go my children. Mas sem esse maneirismo Lean não conseguiria construir sua idéia de Faiçal e o papel que ele desempenha no jogo de interesses geopolíticos e estratégicos no Oriente Médio. O filme é maravilhoso. Maravilhosos são Peter O´Toole, Omar Sharif e Alec Guinness. O último papel para Lean, o indiano de Passagem para a Índia, é simétrico em relação à dama inglesa interpretada por Peggy Ashcroft. No olhar dela, Lean, crítico implacável da grandeza do império britânico, expressa a exasperação do colonizador diante do colonizado. Essas transparecem no dr. Azis de Victor Banerjee, mas também, um pouco, no indiano polido, de formação inglesa, que Guinness interpreta. E entre as máscaras que usou não pode ser esquecida do rei Charles I de Cromwell mesmo que o épico de Ken Hughes com Richard Harris seja inferior a qualquer das incursões de David Lean na grande história. Vale ler sua autobiografia, editada no Brasil pela Francisco Alves, há dez anos. Há reflexões interessantes sobre o ofício do ator, que Guinness definia como um ser incompleto. Num trecho do livro ele diz que o ator não passa de uma colcha de retalhos, que dificilmente chega a compor um homem integral. "Um ator é o intérprete das palavras de outros homens, freqüentemente uma alma que deseja se revelar ao mundo, mas não ousa fazê-lo; um artífice, um saco de maneirismos, um saco de vaidades, um observador frio da humanidade..." Místico - Algumas das passagens mais interessantes de Há Males Que Vêm para Bem discutem a religião, pois Guinness foi um místico que, decepcionado com a igreja anglicana, procurou se fortalecer no marxismo, no hinduísmo (seguindo um guru), para finalmente encontrar-se na igreja católica, à qual se converteu. Usava como máxima uma frase de Teilhard de Chardin - "Nossa parte incomunicável é a pastagem de Deus." Gostava de contar como, antes de adotar a paz do cristianismo, viveu momentos conturbados, próximos do delírio, em busca do que acreditar. Admitiu certa vez que tinha visões. Conta uma delas. Numa de suas viagens aos Estados Unidos para filmar As Aventuras do Padre Brown, foi jantar num restaurante de Los Angeles com a roteirista Thelma Moss. Lá se encontrou com James Dean, que lhe pareceu uma figura adorável. A recíproca foi verdadeira e ambos conversaram animadamente. Na saída, Dean fez questão de mostrar a Guinness sua nova aquisição- o fatídico Porsche envenenado com que o lendário astro de Vidas Amargas, Juventude Transviada e Assim Caminha a Humanidade encontraria a morte a 300 km por hora. Guinness olhou para o carro, para Dean e teve a visão dele morto. Pediu-lhe, por favor que desistisse daquele carro. Dean achou graça. Não estava disposto a separar-se da máquina que chamava de "minha garota". Eram 10 da noite de uma sexta-feira de setembro de 1955. Na sexta-feira seguinte, Dean morreu esmagado pelas ferramentas do carro destroçado.

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