Adaptações literárias não convencem no cinema

A exibição dos filmes Olga e O Quinze no Festival de Cinema de Gramado empolgou o público, mas não a crítica

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Por Agencia Estado
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Balzac e a costureirinha chinesa. Pegando carona no título do filme cino-francês em exibição em São Paulo, talvez se pudesse rebatizar Olga, o filme que Jayme Monjardim adaptou do livro de Fernando Morais, como Marx e o costureirinho brasileiro. Numa cena decisiva, Luís Carlos Prestes faz um vestido para a sua Olga. Ele conta que aprendeu a costurar com a mãe e as irmãs. O diretor Monjardim e a roteirista Rita Buzzar, também produtora, poderiam estar usando o ato de costurar no seu sentido metafórico, mas não. Ao longo do filme, Prestes não sabe costurar alianças. É a sua tragédia. Termina isolado numa cela pequena, um patético general sem soldados, como lhe atira na cara o arquiinimigo Filinto Müller. Olga inaugurou na segunda-feira à noite o 32.º Festival de Gramado - Cinema Brasileiro e Latino. Na sexta, toma de assalto 260 salas de todo o País. O distribuidor e co-produtor Bruno Wainer, da Lumière, diz que nunca esteve tão certo do potencial de um filme. Ele acredita no potencial de Olga. Tem bons motivos para isso. Na segunda-feira, o público irrompeu cinco vezes em aplausos durante a projeção final dos créditos. A primeira foi quando surgiu o nome do diretor. A segunda quando ficou estampado sozinho, na tela, o nome de Camila Morgado, que faz Olga. Encolhida num canto, meio escondida na sombra, a atriz saboreou aquele momento de triunfo. "Estou muito emocionada", confessou. Jayme Monjardim transformou Olga num novelão e você pode até achar que era o que se deveria esperar de um diretor com experiência em telenovelas. Ele se defende. Diz que não pensou em cinema nem televisão. Contou a história de Olga como conta todas as suas histórias de amor. O filme é muito bem produzido. É raro ver-se, no cinema brasileiro, uma obra de época em que tudo pareça verdadeiro. Em geral, são aqueles pequenos grupos em cantos de cenário, para não encarecer a produção. Olga foi inteiramente filmado no Brasil, no Rio. Rita Buzzar e o diretor Monjardim recriaram um campo de concentração alemão sob a neve em pleno calor carioca. Não representa pouca coisa. Olga tem também diálogos fracos, uma sucessão infinita de palavras de ordem e uma música melosa que invade, como intrusa, a maioria das cenas. Tudo isso ainda seria passável. O verdadeiro, o maior problema, é conceitual e ideológico. Prestes é um homem cujos grandes sonhos não se realizam porque, no fundo, os gestos do Cavaleiro da Esperança talvez sejam delicados demais. Olga é forte, mas o amor a fragiliza. São duas vítimas da tormenta. No recente Diários de Motocicleta, Walter Salles filmou as andanças do jovem Ernesto Guevara pela América para mostrar como se forjou o futuro revolucionário mítico, o Che. Prestes é desmistificado até o limite em Olga. Parece estranho, em 2004, ver um filme em que o diretor e a roteirista esperem que o espectador vibre quando um auditório inteiro canta a Internacional. Isso é logo no começo. Vai contra a corrente, neste mundo globalizado. Depois, até o fim de Olga, o que se assiste é à destruição sistemática do sonho revolucionário. Camila Morgado diz, lá pelas tantas, que se pode aprender com os erros. Teria sido essa a intenção ou o seu contrário? Os sonhos desfeitos, a guerra perdida, só o que resta nesse mundo de perdedores - e é muito, convenhamos - é a integridade pessoal. A caminho da câmara de gás, Olga diz que não está aceitando passivamente a própria morte. É quando ocorre a cena mais bela, que a roteirista foi buscar em Fernando Morais, porque também é a idéia que encerra Chatô. A Olga adulta reencontra a menina que foi. De antemão, você podia saber que a história de Olga não comporta final feliz, mas se o filme fosse menos sentimental, talvez não deixasse apenas no espectador essa sensação de uma resistência que é só dignidade, porque está condenada ao fracasso. Há outra bela cena em O Quinze, o filme de Jurandir Oliveira que iniciou, logo depois de Olga, a competição, propriamente dita. É uma adaptação do romance de Rachel de Queiroz sobre a grande seca do Ceará, em 1915. A mãe abandona o próprio filho. Entrega-o à madrinha, que terá melhores condições para criá-lo. O menino agarra-se ao pé da mesa. A madrinha tenta ganhar sua confiança. É um momento pungente de cinema. Mas O Quinze, embora honesto, não é um bom filme. É tosco e, como Olga, mas de forma diferente, atordoa o espectador com tanta música. O conceito, porém, é forte. A família de retirantes - que num certo sentido evoca a de Vidas Secas, o clássico de Nelson Pereira dos Santos, a quem há um agradecimento, no final - desagrega-se. Vai perdendo tudo - cachorro, filhos, a própria dignidade. Só não perde o instinto de viver. O pai, a caminho de São Paulo, ouve a música de pífanos e, de alguma forma, encontra forças para sorrir. A vida pode ser seca, o que vem pela frente é assustador, mas o in stinto e - talvez - a esperança são impulsos para prosseguir no caminho.

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