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Adaptação do chileno Raúl Ruiz para livro de Castelo Branco sai em DVD

Após ler 'Mistérios de Lisboa', diretor afirmou que poderia fazer longa com 20 horas de duração

Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Por Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

O romance Mistérios de Lisboa, de Camilo Castelo Branco e a vocação barroca do cineasta franco-chileno Raúl Ruiz casam-se com harmonia e comunhão de bens. Feitos um para o outro.

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Mas não estava escrito nas estrelas que o diretor se interessaria por essa matéria-prima literária. Foi preciso que o produtor Paulo Branco oferecesse a obra do seu conterrâneo ao chileno. Ruiz parece à vontade no cipoal de tramas rocambolescas de Camilo, que publicou a história em livro em 1854, quando tinha 29 anos. É seu segundo romance, mas o texto havia saído antes, em capítulos, no jornal O Nacional, do Porto.

Após ler o livro, Ruiz disse ao produtor que daria um filme de 20 horas de duração. Contentou-se com uma versão de 4h27 minutos para o cinema e uma minissérie em seis capítulos para TV, com 52 minutos cada. Esta última é que está saindo em DVD. São três discos, os dois primeiros com os episódios, o terceiro dedicado aos extras, entre os quais longa entrevista com o diretor.

As diferenças entre as duas versões não se limitam à duração maior da série para TV. As estruturas diferem. Na versão para cinema, as histórias misturam-se de maneira menos segmentada, aprofundando a sensação de narrativa em abismo, sob a forma de sonho. A versão para a TV é mais clara. Os episódios são divididos em blocos, constituindo unidades quase autônomas, embora seu sentido ainda dependa do conjunto. Proporcionam compreensão mais imediata, embora a profusão de histórias ainda produza sensação de vertigem.

A estrutura é a do folhetim. Uma trama básica abre-se em narrativas variadas e os personagens e linhas narrativas vão se multiplicando. Basicamente, há um narrador, chamado João, que dá início à fabulação. Ele fala de si. A primeira frase do romance, que também é a do filme, é estupenda: “Eu era um rapaz de catorze anos, e não sabia quem era...” Não se trata de uma forma retórica, crise de identidade de um adolescente. João, era apenas assim que o chamavam, não tinha sobrenome, não sabia quem eram o pai e a mãe. Em suas palavras, “vivia na companhia dum padre e duma senhora que diziam ser irmã do padre, e de vinte rapazes, que eram meus condiscípulos”. Era um órfão, do qual todos zombavam.

Logo João ganhará identidade. Ao menos saberá quem é a mãe, e passará a chamar-se Pedro da Silva. Mas então o folhetim se bifurca e seremos apresentados às enigmáticas figuras da mãe do rapaz, Angela de Lima (Maria João Bastos) e do padre Diniz (Adriano Luz). Outros personagens vão entrando em cena e aumentando a complexidade da trama. Nos desvãos do exasperado romantismo de Camilo se desenvolve a trajetória do órfão João, depois Pedro da Silva, às voltas com esse padre sensual e maquiavélico, Dinis, uma condessa vingativa, atos de pirataria e outras circunstâncias e peripécias.

São tramas como amplificadas pelo sentimento de prazer e pasmo diante da “mórbida complexidade sentimental da humanidade”, como definiu o crítico português Alexandre Cabral na apresentação do livro. E, de fato, a história comporta cupidez material, ciúmes, assassinatos, incesto, um mundo bruto, cru, distante da espiritualidade que o romancista iria buscar posteriormente em suas obras.

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Lendo-se o romance custa-se a acreditar que tamanha dimensão de material possa comprimir-se num filme, mesmo com 4h27 ou seis horas de duração. A verdade é que o roteirista Carlos Saboga consegue a proeza de síntese, sem deixar de fora nada de muito relevante. E Ruiz, com sua criatividade habitual, ainda adiciona material de própria lavra. Há episódios encadeados de maneira diferente no filme e no livro. Encontros que não se deram na versão literária, acontecem na cinematográfica. Ruiz ainda imagina um recurso interessante, um pequeno teatrinho de papelão, brinquedo de criança que acompanhará Pedro da Silva ao longo da sua vida, e no qual se encena parte da trama. O teatro dentro do teatro. O palco da vida, em reprodução infinita, de modo a jogar o espectador na vertigem da narrativa.

A história, escrita no século 19, passa-se entre os séculos 18 e 19. Há episódios que se referem à Revolução Francesa (1789), por exemplo. Desenvolve-se em várias cidades da Europa, Lisboa, Paris, Veneza, passa pela África e pelo Brasil. Seus personagens masculinos são aventureiros, não param quietos. As mulheres entregam-se a amores fulminantes, em geral ilícitos, segundo as convenções da época. Há uma melancolia profunda na parte portuguesa, com criaturas que se acreditam destinadas ao sofrimento ou ao consolo triste da religião. Mas também entram em cena mulheres libertas, ou manipuladoras, sem escrúpulos, que não se detêm diante de nada para alcançar seus objetivos. Certa atitude iluminista se insinua, em especial quando surgem as personagens francesas (vividas pelas ótimas Clotilde Hesme e Léa Seydoux, a mesma que está em cartaz em Azul É a Cor mais Quente).

Há, acima de tudo, a magnífica direção de Raúl Ruiz a comandar essa profusão de personagens e domar o mar de histórias que apresenta. Sua mise-em-scène é de rigor excepcional. Num filme muito falado, as imagens não ficam em segundo plano – são elas que dão sentido ao todo e nos fazem imergir em época que não é a nossa e nela coabitar com personagens que teriam tudo para nos parecer estranhos e excêntricos.

Não tenhamos medo de chamar Mistérios de Lisboa por seu nome: obra-prima.

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