PUBLICIDADE

"Abril Despedaçado": sucesso também na bilheteria

Com 32 cópias no Rio, em São Paulo, Brasília, Belo Horizonte e algumas cidades do Nordeste, o festejado filme de Walter Salles já fez quase 60 mil espectadores

Por Agencia Estado
Atualização:

Há um debate que não quer calar no cinema brasileiro que ingressou no 3.º milênio. Refere-se ao embate entre a estética da fome dos anos 1960 e a cosmética da fome que seria praticada hoje por diretores ligados a uma estética publicitária. Alguns críticos implicam com os céus estetizados de Andrucha Waddington em Eu Tu Eles e Viva São João! (fotografia de Brenno Silveira e Marcelo Durst, respectivamente) e com o próprio Walter Salles de Abril Despedaçado (fotografia de Walter Carvalho). A discussão vai longe. Não se impressione com ela - ou, pelo contrário, até por causa ela - e corra a ver o belo filme de Waltinho que estreou na semana passada. Os números da primeira semana apontam para um sucesso considerável. Com 32 cópias no Rio, em São Paulo, Brasília, Belo Horizonte e algumas cidades do Nordeste, Abril Despedaçado fez quase 60 mil espectadores. Não se compara aos megassucessos de Hollywood - que entram em cartaz com centenas de cópias, num esquema de arrasa-quarteirão -, mas é um bom número. Foram 1,7 mil espectadores por cópia e isso representa um alto índice de aceitação. Foi o maior entre todos os filmes estreados na mesma semana, incluindo os de Hollywood. Abril Despedaçado talvez seja o melhor filme brasileiro da retomada, melhor até do que Bicho de Sete Cabeças, de Laís Bodanzky. Salles, generoso, prefere achar que Cidade de Deus, de Fernando Meirelles, que vai representar o Brasil em Cannes, com exibição na Croisette no dia 18, é o melhor feito no País desde Pixote, a Lei do Mais Fraco, de Hector Babenco, há 20 anos. Pode até ser que Cidade de Deus seja mesmo maravilhoso (será preciso esperar até Cannes, para vê-lo), mas Abril, que o espectador já pode ver hoje, é indiscutivelmente o trabalho mais denso e maduro de seu diretor. Havia algo de melodramático em Central do Brasil, como há no clássico Rocco e Seus Irmãos, de Luchino Visconti, sem que esses filmes possam ser rotulados como melodramas. Naquele filme, Waltinho falou sobre a construção da ética num País miserável, que se reconstrói, moral e materialmente. O autor não tinha essa intenção, mas Central talvez possa ser identificado com o projeto de modernidade do presidente Fernando Henrique Cardoso e, por causa disso, foi visto com compreensível reserva por quem não reza na cartilha do neoliberalismo econômico. Preste atenção no título: Central do Brasil. Já revela alguma coisa. Parte da estação de trens para mergulhar no coração do País. Waltinho faz agora novo mergulho no Brasil profundo. Começa com a imagem de uma bolandeira, aquela roda dentada que se usa nos engenhos de açúcar. Termina com o mar. Dois ícones do Cinema Novo dos anos 1960 que Waltinho agora retoma para falar do Brasil dos anos 2000. Na origem da história está o romance do albanês Ismail Kadaré. A trama original passa-se na Albânia. Waltinho ficou fascinado por sua dimensão mítica. Estão lá os mitos fundadores da tragédia: o pai autoritário, a mãe submissa, o filho destinado ao sacrifício. Com a cumplicidade da dupla de roteiristas Sérgio Machado e Karim Ainouz, Waltinho percebeu que podia transportar Abril Despedaçado para o Nordeste, mantendo-se fiel a uma geografia social e humana sem trair o escritor (e o livro) que admira. Tempo - É uma história de vingança, mas os temas são outros. É um filme sobre o tempo inexorável do qual Tonho conseguirá escapar graças à generosidade do irmão. O tempo se faz presente desde a imagem primitiva da bolandeira até a frase, pronunciada no enterro, e que evoca a sentença que o próprio Salles ouviu do mítico Mário Peixoto, autor de Limite. Cada vez que o relógio marca mais um, mais um, na verdade está dizendo menos um, menos um. O tempo, portanto, mas sobre esse tema do tempo Abril Despedaçado cria relações de dominação no seio da família. Há agora o tema do invasor no cinema brasileiro. Está no filme de Beto Brant, como estava antes em Assim Nascem os Anjos, de Murilo Salles. Esse Brasil real, invadido, das ruas, põe na tela uma urgência meio desesperada. Waltinho usa relações familiares autoritárias para expressar na tela outra visão do Brasil de hoje. Está em boa companhia. Bicho de Sete Cabeças participa desse discurso, embora de forma um tanto marginal. A linha é mais direta entre Abril, Lavoura Arcaica, de Luiz Fernando Carvalho, e As Três Marias, de Aluizio Abranches, que trata, no feminino, com uma mãe (Dominatrix) no lugar do pai, do mesmo tema. Todos esses filmes deslancham a partir da mesa na qual a família se reúne para comer (e definir relações de poder). Talvez não fosse a intenção de Waltinho, talvez ele nem soubesse que era esse o procedimento dramático de Luiz Fernando Carvalho (embora ambos tivessem o mesmo diretor de fotografia: Walter Carvalho). A cena inicial de Abril, com a família ao redor da mesa, faz a súmula de boa parte dos temas que Luiz Fernando Carvalho leva três horas para desenvolver com excessiva reverência ao livro de Raduan Nassar. Abril concentra (ou desmonta) Lavoura em poucos minutos e depois parte para contar uma dolorosa e pungente história de vingança. Tonho, interpretado por Rodrigo Santoro, tem de vingar a morte do irmão, matando o assassino numa interminável guerra de famílias que faz correr um rio de sangue no sertão. Tonho tem de matar para ser, ele próprio, morto em seguida. Tal é a lei natural. Ele mata, mas descobre o amor e o sexo com a brincante. Abre-se um mundo de possibilidades para Tonho, mas ele está condenado. Salva-o o irmão, singelamente (e nordestinamente) chamado de Menino, apenas. É uma idéia ou influência que vem de Rocco, o clássico de Visconti que é um dos filmes-faróis da modernidade (e cuja marca transparece em obras tão diversas quanto Abril e Moulin Rouge, de Baz Luhrmann, por exemplo). Waltinho reinventa Glauber Rocha (o sertão vira mar em Abril) e Visconti, põe cor no preto-e-branco, cria amanheceres e entardeceres deslumbrantes, sem cosmetizar a miséria. Uma camisa manchada de sangue, ondulando ao vento, pode ser o mais belo espetáculo da terra, coisa de cortar o fôlego, como só o cinema pode criar. Mas a dor e o sofrimento estão sempre presentes, são viscerais em Abril. É o maior filme do diretor, elogio até pequeno para a sua grandeza. Waltinho, por mais talento que já tivesse mostrado, não havia feito nada dessa magnitude, antes. Abril Despedaçado. Drama. Direção de Walter Salles. Br-Suíça-Fr/2001. Duração: 105 minutos.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.