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"Abril Despedaçado" é testado no Brasil

Apesar do pessimismo da trama centrado em secular luta de famílias, o diretor Walter Salles contraria Ismail Kadaré, o autor do romance em que se baseia o filme, e concede ao personagem principal uma chance de escolha

Por Agencia Estado
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Há quatro anos, com Central do Brasil Walter Salles tornou-se o cineasta brasileiro de maior projeção nos anos 90. Recebeu 50 prêmios em festivais, entre eles os prestigiados Urso de Ouro em Berlim, Globo de Ouro de melhor filme estrangeiro e dupla indicação para o Oscar (filme estrangeiro e atriz). Tão importante quanto: o filme foi amplamente valorizado em seu país, onde é comum santo de casa não fazer milagre. A provável unanimidade, no entanto, veio acompanhada do carma que paira sobre os vitoriosos: a expectativa quanto à obra seguinte. No caso dele, a rigor, esta já aconteceu: O Primeiro Dia, projeto híbrido cinema/TV, assinado com Daniela Thomas, foi lançado em 1999, recebeu prêmios e elogios, mas passou batido pelas telas. A artilharia da expectativa concentrou-se, portanto, no projeto-solo Abril Despedaçado, adaptação do romance do albanês Ismail Kadaré, que chega aos cinemas nesta quarta-feira. Desde a seleção do filme para o último festival de Veneza, Salles vem trilhando o outro lado da trajetória de Central, através de uma cobrança mais ou menos explícita de repetição ou superação dos resultados obtidos. Para a maioria dos diretores, os feitos internacionais de Abril seriam saudados como uma bela consagração, com indicação para o Globo de Ouro e ao Bafta (o Oscar inglês) de melhor filme estrangeiro, a inclusão em várias listas de melhores de ano, além de críticas muito positivas, sobretudo na Inglaterra, onde, por exemplo, Anthony Minghella (diretor de O Paciente Inglês) assinou artigo no The Guardian intitulado "O deus das pequenas coisas", exaltando a "carga poética" do filme. Se a carreira de Abril no exterior não repetiu a extraordinária façanha de Central, o que realmente importa - o filme na tela - está longe de ser decepcionante. Ao contrário, trata-se de uma obra densa e madura, de arrebatadora beleza plástica, amplo domínio narrativo e interpretações irrepreensíveis, que têm como cenário o calcinado sertão da Bahia retratado nas cidades de Bom Sossego, Caetité e Rio das Contas. Dois filmes - Abril Despedaçado começa onde termina Central do Brasil: em algum ponto perdido do interior do País (desta vez, o sertão da Bahia e não mais de Pernambuco). Como em Central, um menino encantador, Pacu (o estreante Ravi Ramos Lacerda), concilia força e vulnerabilidade e poderá derreter corações. Apesar da distância no tempo - nove décadas separam as tramas -, personagens dos dois filmes estabelecem vários tipos de contato, mesmo que trafeguem em direções opostas. Ambos os filmes começam com perdas: da mãe, em Central (como, aliás, também em Terra Estrangeira). Em Abril, perde-se o filho, o irmão. Em Central, o menino órfão Josué (Vinícius de Oliveira) deixa um Rio hostil e excludente para percorrer o País em busca do pai ao lado de Dora (Fernando Montenegro), mulher endurecida pelas dificuldades. Para Josué, o horizonte se amplia nessa viagem em busca das origens e de uma noção de pertencer a um grupo. Em "Abril", os conflitos têm origem em um enraizamento implacável - família, solo, tradições. Diferentemente dos irmãos distantes de Central, em Abril Tonho (Rodrigo Santoro) e Pacu são inseparáveis e vivem às últimas conseqüências a ligação fraterna. No contato com dois artistas de um circo mambembe, Pacu descobre o livro, Tonho o amor. E desafiam a família e a tradição ao compartilhar fantasias e esperanças de tirar o pé do solo ressecado e ciclicamente manchado de sangue. Enquanto Josué busca o pai e acaba vislumbrando, ao lado dos irmãos, uma integração social mais digna e protegida, Pacu e Tonho têm apenas uma possibilidade de sobrevivência mais plena: a ruptura com a família. Central fala do abandono familiar, enquanto Abril enfatiza a opressão da família. Em Central, o sertão pode ser agregador, diversificado, ponto de chegada. Em Abril, o sertão é inóspito, uma paisagem invencível, ponto de partida. Central fala de um sentimento de desenraizamento que termina com a redenção pelo encontro. Abril mostra o paroxismo do enraizamento e aponta para a individuação. Central indica que mesmo para adultos com o coração seco como Dora (Fernanda Montenegro) há regeneração pelo afeto. Em Abril, os pais de Pacu e Tonho são reféns de um destino imutável, como provavelmente foram seus pais. Central é um filme em linha reta - sai do Rio, rumo ao Nordeste. Abril avança em movimentos circulares, marcados pela rotação incessante da bolandeira puxada por bois entoados por um pai feitor (José Dumont, excelente). Apesar do pessimismo da trama centrado em secular luta de famílias, Walter Salles contraria Ismail Kadaré, o autor de Abril Despedaçado, e concede a Tonho um voto de confiança. Diante da bifurcação da estrada, Walter Salles liberta o rapaz do jugo familiar para que siga o próprio destino. O mar (Rio) vira sertão em Central. Em Abril, o sertão vira mar. E à beira de um mar mítico, um jovem de 20 anos, pela primeira vez, tem o horizonte pela frente.

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